No dia 11 de março, foi concluído um importantíssimo julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o foro por prerrogativa de função, que nada mais é do que o estabelecimento do tribunal competente para o julgamento de infrações penais praticadas por ocupantes de cargos ou funções.
Vale salientar que, de acordo com a Constituição Federal, compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;
d) o habeas corpus, sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o habeas data contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal.
Conforme reproduzido no Boletim de 2025, Processo Penal do STF em Foco, “trata-se de uma prerrogativa da função – e não da autoridade” e, de acordo com a citação de texto de Tourinho Filho, “há pessoas que exercem cargos de especial relevância no Estado e, em atenção a esses cargos ou funções que exercem no cenário político-jurídico da nossa Pátria, gozam elas de foro especial, isto é, não serão processadas e julgadas como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos órgãos superiores, de instância mais elevada. Pondere-se, contudo, que tal tratamento especial não é dispensado à pessoa, mas sim ao cargo, à função. E tanto isso é exato que, cessada a função, desaparece a prerrogativa”.
Em 1964, o STF publicou a Súmula 394 no seguinte sentido:
“Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.”
Esse enunciado foi cancelado em 1999, pois considerou-se que “Naquela ocasião, o foro por prerrogativa de função abrangia inclusive os crimes praticados antes da investidura no cargo e os que não guardavam qualquer relação com o seu exercício, o que contribuía para gerar impunidade e retardar a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas.” Em razão disso, vários processos que estavam em andamento tinham sua competência modificada durante o curso dos processos, em razão do início ou término de um mandato.
Em 2018, por ocasião do julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 937 (DJe 11.12.2018), o Plenário do Supremo Tribunal fixou a atual interpretação restritiva ao foro por prerrogativa de função, fixando a seguinte tese: “O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.”
Nesse julgamento, o Ministro Barroso destacou que:
“Os frequentes deslocamentos (o ‘sobe-e-desce’ processual) são um dos maiores problemas da prerrogativa, capazes de embaraçar e retardar o processamento de inquéritos e ações penais, com evidente prejuízo para a eficácia, a racionalidade e a credibilidade do sistema penal. Isso alimenta, ademais, a tentação permanente de manipulação da jurisdição pelos réus. Há os que procuram se eleger para mudar o órgão jurisdicional competente, passando do primeiro grau para o STF; há os que deixam de se candidatar à reeleição, com o mesmo propósito, só que invertido: passar a competência do STF para o órgão de primeiro grau. E há os que renunciam para produzir o efeito de baixa do processo, no momento que mais lhes convém”.
Em razão disso, em 2018, determinou que “após o final da instrução do processo, com a publicação do despacho para apresentação de alegações finais, o Tribunal continua competente para o julgamento da causa mesmo que o agente deixe o cargo.”. Todavia, o STF relativizou essa regra “para estabelecer que a prerrogativa do foro subsiste quando o parlamentar federal é eleito, sem interrupção do mandato, para a outra Casa legislativa.”
O julgamento de agora, 11 de março de 2025, estabeleceu que “O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO PARA JULGAMENTO DE COMETIDOS NA FUNÇÃO E EM RAZÃO DELA DEVE SER MANTIDO MESMO APÓS O AFASTAMENTO DA AUTORIDADE, POR QUALQUER CAUSA (RENÚNCIA, NÃO REELEIÇÃO, CASSAÇÃO, DEMISSÃO ETC.)
Nesse julgamento, prevaleceu o voto do ministro Gilmar Mendes, que foi o relator do referido Habeas Corpus. Segundo mencionado no referido Boletim do STF EM FOCO, para o ministro, “o sistema vigente é contraproducente, por causar flutuações de competência no decorrer das causas criminais e por trazer instabilidade para o sistema de Justiça, já que o STF hoje adota a regra da atualidade, estabelecida no Inq. 687-QO, segundo a qual o afastamento das funções acarreta o deslocamento de todos os inquéritos e ações penais originários para a primeira instância.”
Segundo o ministro Gilmar Mendes, “É necessário avançar no tema, para estabelecer um critério geral mais abrangente, focado na natureza do fato criminoso, e não em elementos que podem ser manobrados pelo acusado (permanência no cargo). A proposta apresentada atende a essa finalidade. Preservando os aspectos centrais do entendimento firmado na AP 937-QO, ela estabiliza o foro para julgamento de crimes praticados no exercício do cargo e em razão dele, ao mesmo tempo que depura a instabilidade do sistema e inibe deslocamentos que produzem atrasos, ineficiência e, no limite, prescrição”, afirmou o ministro.
Vale ressaltar o entendimento dos ministros vencidos nesse julgamento, isto é, da ministra Cármen Lúcia, Luiz Fux, Edson Fachin e André Mendonça, relatado no referido boletim do STF EM FOCO:
“Para eles, não há que se falar em evolução da jurisprudência, tanto mais porque não cessar o foro com o afastamento da autoridade do exercício da função seria considerar a competência por prerrogativa de função como um privilégio da autoridade, o que, verdadeiramente, não o é, sendo uma prerrogativa de uma função eleita como importante pelo Constituinte.”
Dessa forma, por maioria, o Plenário do STF “determinou a aplicação imediata da nova interpretação aos processos em curso, com a ressalva de se manterem todos os atos praticados pelo STF e pelos demais Tribunais e Juízos com base na jurisprudência anterior”.
Obviamente, o julgamento pelo STF, em razão da prerrogativa de função, pode ser muito prejudicial para o ex-presidente Jair Bolsonaro, pois se ele fosse julgado por um juiz singular, pudesse recorrer a um tribunal, e depois recorrer ao Superior Tribunal de Justiça e ao STF, ele teria mais chances de lograr êxito em sua defesa, uma mais ampla defesa, que é um princípio constitucional que deve ser preservado.
Muitas pessoas entendem, e eu concordo com esse entendimento, que ao ex-presidente Bolsonaro deveria ser dado o mesmo tratamento processual que foi dado ao então “ex-presidente Lula” nos processos criminais em que ele foi acusado e até julgado há poucos anos.
Lembre-se de que, de acordo com o publicado pela revista Veja https://veja.abril.com.br/politica/bndes-delacao-palocci-pt-governos-estrangeiro, consoante a delação de Antonio Palocci, foram pagos “489 milhões de propinas pagas à alta cúpula petista entre 2009, no fim do segundo mandato de Lula, e 2014….”. Portanto, para ele foi respeitado o direito de ser julgado por vários graus de jurisdição, ou seja, por várias instâncias judiciárias, também por fatos cometidos enquanto ainda era presidente.
Outrossim, conforme publicado no site da revista VEJA, em 20 de janeiro de 2025, às 08h44, o ex-ministro do STF, Marco Aurélio de Mello, discorda que o julgamento da tentativa de golpe de estado, pelo qual o ex-presidente Jair Bolsonaro e o general Walter Braga Netto foram indiciados pela Polícia Federal e sobre os demais participantes dos ataques de 8 de janeiro de 2023, seja realizado em única instância pelo STF.
“Para ele, os ministros do STF não são autoridades competentes para os casos. “O princípio do juiz natural vai por terra e aí se defende em pela única, o cidadão não tem jeito, não tem recurso, é algo inimaginável.”
Segundo o ex-ministro Marco Aurélio, “como Bolsonaro não é mais presidente da República, não teria mais direito ao foro privilegiado e, portanto, não teria de ser julgado no STF, assim como a maioria dos indiciados pela tentativa de golpe de estado”.
Particularmente, embora o foro por prerrogativa de função esteja previsto na Constituição Federal, considero prejudicial para um réu não poder recorrer, ter de se submeter a um único julgamento. Sou favorável a que aos réus seja dada a mais ampla defesa, com o julgamento em várias instâncias para que haja finalmente o trânsito em julgado de uma decisão.
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Foto da Capa: Fábio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil