Escrevo este artigo na sexta-feira (25/10), portanto, antes de saber o resultado das eleições em Porto Alegre. Se a esquerda ganhou, foi um milagre e falarei dele depois. Se a esquerda perdeu, não foi por falta de aviso. Fiz coro com os que queriam prévias; fiz coro com aqueles que diziam “a candidata tem uma história de valor, mas tem rejeição”; fiz coro com os que pediam pesquisas com pré-candidatos de esquerda e fiz coro com os que queriam uma frente de esquerda sem o PT na cabeça de chapa. Como o coro greco-romano, estava tentando dizer a verdade do que se passava, alertar seus personagens, adiantar a tragédia que se aproximava. Se ganhou, eu estava errado. Se perdeu, talvez estivesse certo. Falamos que, seja na derrota ou vitória, o que importa é a jornada. Quando repasso o que aconteceu, a sensação que tenho foi a de que vivi como se estivesse num filme de terror.
O arquétipo dos filmes de terror inicia quando Mary Shelley (1797-1851) cria em 1818 a história de uma criatura feita de pedaços de cadáveres. Ali ela não estava revivendo um morto, mas criando, por meio da ciência, um homem novo que queria que fosse superior aos produzidos pela natureza. O tema sugere um paralelo possível com o campo da política. No campo da arte, Frankenstein evoca a questão da forma ideal. Diz Jorge Coli que os “pintores, então, decompunham seus modelos, aperfeiçoando, de modo obsessivo, cada parte do corpo, antes de uni-los nos quadros definitivos: as pranchas de estudos, com pés, bocas, torsos, mãos, muito precisos, limpos, nítidos, mas dispostos sem ordem, que causam uma evidente estranheza”. Foi o que justamente faltou no campo da política de esquerda, esse planejamento com antecedência, essa antecipação do destino de cada parte, de cada opção à disposição, o que estava claro para mim desde o princípio. Quem é de esquerda sofreu muito com as eleições.
Como Frankenstein queria ligar arte e ciência, a esquerda queria ligar arte e política. O projeto de ambos era luminoso como uma obra de arte. Mary Shelley falava de sua obra “com seus membros proporcionados, escolhidos, seus traços como um belo – Belo! – Deus” (Coli). A esquerda desde os anos 80 olhava a política como uma obra de arte, afinal, era um movimento nascido nas fábricas, nas vilas. Frankenstein nasce no neoclassicismo da Revolução Francesa, mesma época em que a guilhotina decepava e fazia vítimas; a esquerda nasceu dos movimentos sociais urbanos, mas, como o monstro de Shelley, também é vítima da sua época, agora a era neoliberal que, como a época da Revolução, também mutila, decepa e amputa.
Não foi essa a trajetória da esquerda frente à ascensão neoliberal? Abandonando seus ideais da época de sua fundação, remendando seu próprio corpo mutilado, remendava-se a si mesmo na crença de que disso dependia sua sobrevivência. Se o século 18 viu emergir na Europa a cirurgia militar que amputa o corpo e a invenção de instrumentos médicos que expõem as carnes, a esquerda foi hábil em fazer seus progressos para adaptar-se ao novo mundo neoliberal: aqui e ali cedeu aos imperativos de mercado; aqui e ali endossa o discurso do empreendedorismo, assumindo posições pró-capital (Haddad) em questões que jamais poderia recuar, como a dos benefícios sociais. O pesadelo coletivo das guerras napoleônicas que varreu a Europa de Shelley e que levou à criação de seu monstro é atualizado no contexto eleitoral que levou à derrota do partido nestas eleições em inúmeras cidades, só considerando os dados do primeiro turno. Se pintasse hoje, os quadros de Théodore Géricault (1791-1824) não teriam cabeças e membros humanos amputados, mas ideias abandonadas, ideais perdidos, lideranças afastadas e eleições perdidas.
Como Frankenstein, que vem para punir a ciência que não presta conta se não a seus próprios objetivos, as derrotas da esquerda querem punir aqueles que não atendem mais a seus objetivos iniciais: você não vê mais a esquerda nos morros e vilas, hoje ocupadas pelos evangélicos; não a vê mais na frente de batalha das fábricas, com a ascensão do discurso empreendedor. Quantos dos seus representantes já a abandonaram em direção a novos partidos de esquerda? Quantos ainda sairão? Quando Bram Stoker (1847-1912) criou seu outro monstro de filmes de terror, Drácula, seu vampiro nasceu em 1897, quando o romantismo vagava no mundo sobrenatural de personagens maléficos que sugavam a vida de suas vítimas.
Agora, o dentuço notívago atende pelo nome de Capital. Seu caráter noturno está na massiva propaganda que vemos em nossas casas à noite, durante nosso descanso enquanto vemos novela – que nem é mais novela, diga-se de passagem, há muito já rompeu o limite da fantasia e realidade já agora se mistura com os intervalos comerciais; está na região de origem, que deixa de ser as terras do escritor irlandês e passa a ser o mundo inteiro, mas, principalmente, e aí cabe a esquerda este lugar, o princípio epidêmico como afirma Coli “aqueles que foram vampiros passivos durante suas vidas se toram ativos depois de suas mortes, quer dizer, aqueles que foram chupados, chupam também, por sua vez”, referindo-se o autor a um romantismo que tentou dissolver as características que Bram Stoker preservou. Se a esquerda morrer, é porque sua prática também deixou de ser de esquerda para se assemelhar à de seu algoz.
Quero sugerir com isso que o mito do vampiro foi recuperado pelo capitalismo. Não invejamos Bill Gates, o dono da Microsoft, por sua elegância aristocrática, sua superioridade pessoal das atitudes controladas como se fosse a atualização de Bela Lugosi (1882-1956) que conferiu ao vampiro as características que conhecemos? A esquerda se construiu como o avesso do neoliberalismo com sua crítica ao capital, às suas formas de exploração do trabalho, como o Cristo que inspira o avesso do vampiro neoliberal. Coli lembra que no último filme da série Drácula, de 1973, O Conde Drácula e sua noiva vampira, o Drácula ainda é apanhado por um espinheiro, metáfora da coroa de Cristo, e suas palmas são atravessadas por pontas, como na crucificação. A simbologia não serve também para mostrar que a esquerda também pode ser atingida pelas características neoliberais que critica, cedendo aqui e ali. Então, mesmo quando vence, ainda é… esquerda?
Já se disse que a esquerda é outra forma de igreja. Se Drácula e Frankenstein se desenvolvem na tradição gótica anglo-saxônica em um meio influenciado pela igreja protestante em seus conflitos com a igreja católica, a esquerda se desenvolve no meio influenciado pelo enfrentamento capitalista e derrocada dos regimes do Leste Europeu. Ambos compartilham do sobrenatural que se manifesta na materialidade: da água benta e hóstia dos primeiros a ceder no limite à força da mão invisível do mercado nos segundos, é sempre de um ideal de fé de que se trata. Perdemos a fé num mundo fora do capitalismo, como diz Zizek? Perdemos a fé na capacidade de julgamento das massas, como diz Baudrillard? O cinema mostra a possessão do diabo liberada por palavras em latim, expressão de como o protestantismo vê o capitalismo; a política mostra a esquerda sob a possessão do capitalismo neoliberal em sua incapacidade de libertar-se da linguagem da mercadoria. Agora, políticas públicas cedem espaço também a… parceiros! Coli cita Cabo do Medo (1991), filme em que Robert De Niro é a encarnação do demônio e representa a natureza do mal dentro da humanidade. Eu me preocupo com a natureza do mal (o capitalismo) dentro da esquerda: se os anos 80 foram filmes de vampiro sem energia, os anos 2000 foram os da esquerda sem energia, seu equivalente político. Não faltou energia nesta propaganda política ou estou errado?
Nós, os velhos, os que vivemos a esquerda dos anos 80, devíamos ter feito algo como fizeram os filmes dos anos 90 de Coppola, Drácula de Bram Stoker ou de Kennedy Branagh, com seu Frankenstein de Mary Shelley, que recuperaram os nomes dos fundadores no título para fortalecer sua autenticidade. Deveríamos ter feito algo assim para voltar ao ideal de esquerda de nossas origens. A ideia seria apagar a tradição de esquerda que cedeu à direita, que incorporou seus mecanismos e variantes para voltar a uma esquerda mais autêntica. A direita, com seus representantes, fez como Polanski de A Dança dos Vampiros (1967), fez piada com as críticas da esquerda como o cineasta fez com os cacoetes do gênero de vampiro. Faltou à esquerda o seu “Bebê de Rosemary” (1968), abrir-se para o fato de que seu anticristo era o neoliberalismo e o mercado. Ver os candidatos de esquerda falando em amar sua cidade torna-se o emblema da possessão capitalista, o mesmo discurso da direita para a conquista das massas. É preciso outra narrativa. Falta à esquerda algo como A Bruxa de Blair (1999) ou como O Exorcista (1973), vomitar a gosma verde capitalista como emblema da possessão demoníaca neoliberal, forma de assumir seu discurso crítico contra a devoração de mercado.
Eu posso estar errado, mas a esquerda cedeu à sua caricatura política e perdeu suas preocupações filosóficas. A esquerda que disputou as eleições apenas possui resíduos do que foi um dia: como no filme Fim dos Dias (1999), de Peter Hyams, a esquerda mantém apenas traços caricaturais, como o filme mantém os traços caricaturais dos filmes de terror. Agora, a esquerda busca ampliar seu público à custa de seus ideais de origem, mostrando uma propaganda “para o povo ver”. Como os filmes de vampiro e de Frankenstein mais recentes, que também começaram a se dirigir para um público não sofisticado, a esquerda paga o preço por dirigir-se a um público que já aceitou o capital. Falta educação anticapitalista para as massas, como propõe Erik Olin Wright. A esquerda não encontrou a fórmula para renovar-se nesse meio como David Cronenberg, que encontrou para os seus filmes a fórmula de sua sexualidade visceral e desventramentos abomináveis, foi incapaz de encontrar seu equivalente do horror canibal como em A noite dos mortos vivos, de George Romero (1968). Para a esquerda, criar estratégias é fundamental para sobreviver; para Wright, manter o princípio de regular por cima e erodir por baixo é o verdadeiro princípio da luta anticapitalista.
Como nos filmes de terror que passaram a empregar a facilidade dos efeitos especiais, a esquerda aceitou rapidamente a facilidade prometida pelas campanhas de marketing eleitoral. Não teve, entretanto, seu momento “Alien”, não chegou a causar medo na direita, como somente a versão de 1979 do filme foi capaz de promover junto ao público. Aqui, a esquerda nunca teve um equivalente à altura. Que equivalente seria esse? O de assustar a direita, oferecendo um modo de narrar e intervir no imaginário popular que não fosse um espelho do modo como age a própria direita. Como a Casa Amaldiçoada, de Jan de Bont, a esquerda se muniu de recursos simbólicos disponíveis no mercado, mas isso não foi suficiente para sustentar o interesse do povo por seu projeto. Seu melhor esforço foi com a criação do PSOL, que, como alguns filmes de terror como Sexta-feira 13, conseguiu voltar a uma cultura que a esquerda já desenvolveu, dando-lhe uma nova roupagem, como o filme fez com as narrativas de terror.
Viver como esquerda no Brasil é como estar num filme de terror. Como em Pague para entrar, Reze para Sair (1981), de Tobe Hooper. Seu diretor começou sua carreira com uma obra muito experimental, Eggshells (1959), e revelou algo mais com O Massacre da Serra Elétrica (1974). Sua entrada no esquemão hollywoodiano se deu com Pague para Entrar, produção da Universal sobre – vá lá – a história de dois casais de jovens que decidem passar a noite, como descreve Coli, “no brinquedo mais aterrador de um circo itinerante em uma cidadezinha no Iowa cheio de gente esquisita”. Ali há um grandalhão mascarado de Frankenstein que organiza entrada e saída do brinquedo (o Funhouse do título original). A esquerda é como esse velho filme de adolescentes que querem transar e escolhem o pior lugar e por isso são mortos pela direita local: a esquerda quer a vitória nas eleições, ela acredita que para isso basta simplesmente usar o marketing eleitoral da direita, usar sua linguagem e revidar ataques, e como no filme, mais uma vez, é uma opção idiota e por isso são derrotados pela direita local, que usa como única máscara um chapéu de palha. Mostrei aqui em Sler a necessidade de uma luta simbólica para isso.
Hooper, no entanto, é mais feliz no que entrega para o público do que a esquerda. Ele é capaz de homenagear obras clássicas de suspense, mas a esquerda que disputou as eleições não é capaz de fazer isso com imagens das obras que fez no período em que esteve no poder na cidade. Sua campanha foi insuficiente para prestar homenagem e lembrar as realizações e personagens da esquerda local do passado, como Hopper fez com seus filmes clássicos, resignando-se a participações breves de suas lideranças. É como se a esquerda quisesse fazer aquela caminhada dos jovens que só existem nos filmes de terror para serem mortos, que só esboçam alguma reação às vésperas de seu desaparecimento. Não é exatamente essa a tese de Jean Baudrillard em Partidos Comunistas, paraísos artificiais da política (Rocco, 1985), onde, desenvolvendo uma afirmação de Berlinguer, “não se deve ter medo de ver os comunistas assumirem o poder pela simples razão de que não o querem”? (p.11). A esquerda sequer foi capaz de aproveitar uma tragédia climática para estar presente mais e sensibilizar suas vítimas, de defender o legado de Lula e Paulo Pimenta na tragédia. Se Pague para Entrar, Reze para Sair tem algo a ensinar à esquerda, é um conceito simples e intrigante de como deveria ser a sua campanha: o filme pode ter deixado a desejar em outros quesitos, mas sua execução realizou o que a esquerda deveria ter feito, que é empolgar o seu público com os valores básicos do seu campo, os valores do campo da esquerda.
A esquerda vive seu momento de filme de horror de jovem adolescente: isolados do mundo político, que lhes é exterior, indiferente e mesmo hostil. Ao contrário, entretanto, dos filmes que se irmanaram com seus públicos numa verdade de comportamento, a esquerda e seu público se distanciaram. A esquerda, diante do eleitor, parece esse adolescente que esconde sua sexualidade ou uso de drogas, como uma força política que esconde seu desejo de combater o capital. São como as garotas do filme Halloween (1978), que disfarçam o cheiro da maconha dentro do carro ao serem abordadas por um policial. A esquerda se tornou a vítima preferencial deste filme de terror da política. Somos fracos frente ao serial killer interpretado pela direita que, com sua energia sobre-humana, a atinge como aos adolescentes dos filmes justamente porque ambos ainda não atingiram a idade da “autonomia e do poder” (Coli). Somos vítimas fáceis porque estamos desarmados, estamos sem armas simbólico-cognitivas para lutar, estamos isolados em nossas bolhas de esquerda, não temos mais a cumplicidade das classes populares. Sem essa autonomia, nessa prisão das redes sociais, repete-se a cultura já estabelecida pelos filmes de terror, voltados para o consumo fácil, e que aqui é a mesma da estabelecida pela cultura neoliberal.
A direita está construindo sua lenda urbana, a de que nada pode existir além do capitalismo. É como o filme “Eu sei o que vocês fizeram no verão passado”, de Jim Jillespie, a do assassino com gancho na mão que não deixa ver seu rosto e ataca namorados isolados. Nós temos nosso assassino, pelo menos de árvores da cidade, que são devastadas sem perdão, como apontam diversas postagens nas redes sociais. O pacto de silêncio da esquerda, como no filme, é aquele de que é impossível fazer críticas às lideranças, às tendências, às poderosas forças que sustentam a esquerda e suas escolhas. O opositor, por sua vez, transforma sua campanha na reta final em uma versão tosca de “Todo Mundo em pânico”, de Keenem Wayans, em que o próprio candidato usa as armas da crítica de esquerda a seu favor.
A campanha de esquerda não assusta mais à direita. Transformou-se no slasher movie, o filme de terror previsível, assim como as campanhas de esquerda são previsíveis. Sem reviravoltas, sem um enredo forte, segue por um caminho fraco. Se a zona de fronteira dos filmes de terror fixa-se no espiritualismo extracorpóreo, talvez seja hora da esquerda seguir noutro caminho, como no filme Premonição, de James Wong, onde os objetos, sem nenhum motivo, tornam-se malévolos. Não foi assim que fez seu opositor, que tornou os objetos da esquerda a seu favor? Isto é a luta simbólica. É preciso criar um clima de terror frio na campanha, um caminho sutil, onde a Bruxa de Blair seja substituída pela Bruxa da Esquerda.
Agora, a política e o cinema de terror compartilham o mesmo tema, o medo da morte. Se continuar com suas opções, como afirma Celi Pinto, a esquerda pode morrer. Não é preciso mais ir para o escurinho do cinema para sentir medo ou pavor. O horror está na política, em seus personagens, sejam vítimas ou agressores, que estão à luz do dia. É o horror das vítimas que votam em seu algoz; é o horror do que faz o algoz com a cidade. Enquanto a campanha de direita transcorria, eram inúmeros aqueles que localizavam na cidade, nas redes sociais, os aspectos de horror de sua gestão. Tarde demais. Não é necessário estar num lugar neutro, a sala de cinema, para ver os piores fantasmas inconscientes virem à tona: eles já estão na realidade. Passamos do massacre de adolescentes dos filmes de terror para o massacre da cidade nas políticas neoliberais, passamos do realismo dos programas eleitorais de esquerda para a comédia dos programas de direita. Quando isso irá parar?
As eleições precisam deixar de ser uma simples reacomodação das forças dominantes. Mesmo que a esquerda ganhe, o que só acontecerá por milagre, se ela continuar a reciclar fragmentos simbólicos do projeto neoliberal, seja aqui ou noutro lugar, a luta já estará perdida. Conquistar o poder pela esquerda precisa ser um projeto de esquerda ou não será nada.
Bibliografia
Coli, Jorge. O túmulo aberto: uma breve história do cinema de terror. Mais FSP, 29.10.2000
Foto da Capa: Reprodução
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