Situação 1. São 5 horas da tarde. Temperatura ao ar livre: 11 °C. Pessoas em situação de rua: 5.788. Total de moradia (inclui albergues, abrigos, hospedagem sociais e outros) para pessoas em situação de rua: 1.500. Fonte dos dados: Monitor de Políticas POPRUA.
O secretário municipal de Desenvolvimento Social, Léo Voigt, destaca o planejamento da prefeitura para a Operação Inverno 2023: “Ficamos alerta para as próximas ondas de frio intenso. Lembro que nosso protocolo orienta abertura de vagas especiais em ginásio público quando a temperatura baixa de 5 graus” (declaração aqui). O velho paradigma do protocolo em operação. Vamos lembrar, vagas extras nos abrigos públicos só são autorizadas pelo poder público se (grifem “se”) “a temperatura baixar de 5 graus”. Vamos lembrar que praticamente uma em quatro pessoas em situação de rua está exposta às condições de frios extremos em Porto Alegre (sem mencionar outras partes do Brasil). Os eventos climáticos extremos aumentam as adversidades. Nessa situação, quando o poder público produz protocolos como o apresentada acima, produz necropolíticas. O atual poder público municipal assume o risco de matar pessoas em situação de rua quando elabora um protocolo que mantém as pessoas em situação de rua porto-alegrense expostas aos efeitos dos eventos climáticos extremos. Os protocolos não são elaborados “do nada” (ex-nihilo como diz o filósofo Pérsio), eles são produzidos a partir de uma visão de mundo. Se as pessoas em situação de poder público possuem uma visão de mundo higienista e da pureza social, suas políticas refletem esses mundos, por vezes, perversos.
Situação 2. São 5 horas da manhã. Temperatura ao ar livre: 7 °C. Para as pessoas em situação de rua que conseguem abrigar-se nos espaços públicos reservados para elas, essas também passam por situações de opressão. No Ginásio do Departamento Municipal de Habitação (Dembah), as pessoas em situação de rua, das 5:30h até 6:00h da manhã, são “convidadas” a deixarem o local. Lá fora, escuridão, as condições climáticas lembram o cenário polar, vento gelado e cortante, por vezes, uma garoa mais gelada ainda. Apesar do café da manhã, as condições climáticas externas aguardam as cerca de 100 pessoas em situação de rua desse espaço. Mais um exemplo de uma política pública em execução, a frigopolítica. Uso o radical em latim para frio. Do latim “frigus”: frio. Do verbo “frigere”: ter frio, estar congelado, ser insensível, frieza. Em português, o prefixo: “frigo”, daí a palavra frigorífico. Pode ser que os atuais políticos públicos porto-alegrenses acreditem no poder frigoterápico para as pessoas de situação de rua ficarem melhor.
A tempo, segundo a Prefeitura, por meio do Serviço de Abordagem Social da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), “Porto Alegre tem hoje cerca de 2,5 mil pessoas vivendo em situação de rua” (leia aqui). Lembro que, segundo o Grupo Passa e Repassa, há o total de moradia (inclui albergues, abrigos, hospedagem sociais e outros) para pessoas em situação de rua de 1.500 camas. Se para a própria Prefeitura há cerca de 2.500 pessoas em situação de rua… há um déficit para, no mínimo 1.000 pessoas, ou 4.288 pessoas (Monitor Politicas POPRUA) expostas às condições dos eventos climáticos extremos em Porto Alegre. Pessoas que não podem abrigar-se em espaços públicos protegidos devido ao protocolo de 5 °C e porque não há uma política para abrigá-los de fato.
Enquanto a temperatura não atingir os 5°C em algum termômetro de algum servidor púbico, para atender o protocolo da operação inverno, pessoas sofrem não os efeitos dos eventos climáticos extremos, mas os efeitos das decisões das pessoas em situação de poder público. Também tenho minhas dúvidas sobre o termo “servidor” ser aplicado para algumas pessoas em situação de poder público, colocadas nessas cadeiras de modo estratégico para produzir frigopolíticas e necropolíticas. Promessas políticas e narrativas não protegem as pessoas expostas aos efeitos dos eventos climáticos extremos. A frigopolítica não acolhe pessoas em situação de rua, ela deixa pessoas na rua. Pelo contrário, a atual frigopolítica porto-alegrense é um tipo de necropolítica climática.
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Mais sobre o Passa e Repassa aqui — Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão sobre Políticas Públicas para a População de Rua. Coordenado por pesquisadoras da UFRGS – Unisinos. Todo voluntariado é bem-vindo.
Foto da Capa: Marcelo Camargo / Agência Brasil