O que tenho gostado cada vez mais no processo do amadure-ser como uma quarentona é o ar de novidade que os velhos versos ganham. Refiro-me àqueles que atravessaram a infância e a adolescência incólumes. Ditos e dizeres que, desde os trinta e algo, vêm recobrando um novo sentido em mim. Acredito que o verbo “recobrar” não é aqui inócuo, porque a sensação é a de que muitas falas antes rechaçadas – ou mesmo esvaziadas – começam a se instalar na varanda dos pensamentos mais acalentados. Agora, já não com a tolerância e a condescendência de antes, mas, como a visita mais esperada; aquela visita a quem a gente oferece o melhor pedaço de pudim.
É como se os versos de sempre passassem a acenar de uma outra forma, conforme os hormônios vão rareando. Agora me ocorre que, talvez, tenha que ver com isso mesmo; a cada mensageiro químico a menos vamos necessitando de mais palavras para sustentar essa ficção de si e dos outros a que chamamos mundo. Quem sabe se a presença dos hormônios seja inversamente proporcional à das palavras? Adoraria, mas não é fundamental. Importa mesmo é que, pelo menos “por aqui”, tem sido assim no reencontro com os velhos livros que vão ganhando novas edições em mim. É ainda desse modo que antigas canções recebem arranjos inéditos em meus ouvidos, ainda que eu esteja escutando a mesmíssima gravação de duas ou três décadas atrás.
Dias desses quis escutar Legião Urbana. Assim mesmo, meio “do nada”, simplesmente porque me lembrei de uma música e fiquei com vontade de me emocionar com ela. Então, lá fui eu para o Spotify. Desse jeito, como quem decide comer um doce fora de hora, saí do meu esquema de tarefas do dia e dei o play. De forma esperada, a estranheza me acompanhou, já que essa nunca foi uma banda de grande devoção para mim. Enfim, escutei a música que queria e, em seguida, o algoritmo me trouxe outra com um verso “novo”: Pais e filhos.
Evidentemente, trago uma das canções mais batidas e com um dos refrões talvez mais lembrados da MPB – é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Porque se você parar pra pensar, na verdade não há. Sempre belo. Ok. Mas, por fora disso, lá estão os versos em que Renato Russo lembra os pedidos e avisos típicos de filhes: quero colo, vou fugir de casa, posso dormir aqui com você… Me diz, por que que o céu é azul? E, finalmente, esse “novo” que me pegou naquele dia: explica a grande fúria do mundo!
Acho que desse, nenhuma mãe e nenhum pai consegue dar conta: explicar a grande fúria do mundo! Quem explica? Racismo, nazismo e guerras em pleno século XXI, quem explica? Bilionários empobrecendo países enquanto são idolatrado por multidões, quem explica? Tecnologia até melhor do que a imaginada e emergência climática em ponto de não retorno, quem explica?
Espero não escutar “Freud explica”, apesar de que a escrita de O Mal-estar na cultura, publicado em 1930, seja uma baita aproximação. Ainda assim, para nós mortais, a aventura da escrita passa longe da crença de ter algo sumamente importante para dizer, mas vamos dando o nosso contorno e, quem sabe, nos sustentando com palavras que oxalá substituam hormônios em fúria… É que não vamos, simplesmente não vai dar para explicar, desde dentro do vórtice, a grande fúria do mundo.
Foto da Capa: Freepik
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