Desde ontem, o Boris, cachorro que minha filha deixou para eu cuidar, parou de falar comigo. Parar de falar, no caso, é um modo de falar. Boris parou de fazer festa para mim, o que parece estranho. Senão, historiemos: desde cedo, ele compreendeu que foi abandonado pela mãe adotiva, que o festejou no começo, depois não pôde mais segurar a barra daquela maternidade, por ser muito jovem e precisar viver a sua vida. Nenhum problema nisso, ela foi muito responsável ao escolher o próprio pai para ser a mãe “adotiva adotiva” do seu filho. E tudo ia suficientemente bem, conforme Winnicott, com “o pai mãe” cuidando, a “filha mãe” vivendo e o “cão filho” bem cuidado. E, sobretudo, grato por isso, pleno de festejos, com muito rabo abanando e brincadeiras.
Desde ontem, porém, Boris cortou relações comigo. Há um fator desencadeante muito claro. É que, na mesma data, eu havia perdido a paciência com ele. Boris vinha fazendo xixi no sofá da sala e no pufe do escritório, sempre que era contrariado. E, como, de certa forma, todos os seres vivos são contrariados, o xixi não parava mais, com o seu cheiro infestando a sala, o escritório, e me confinando no quarto.
Ontem, finalmente, perdi a paciência e expressei minha contrariedade com o comportamento do Boris, deixando-o em penitência, recolhido na cozinha, toda vez que fazia xixi em lugar impróprio. Desde hoje, ele se recusa a abanar o rabo para mim e a buscar o brinquedo para o nosso jogo. Como em uma história em quadrinhos, seu balão de fala aparece vazio, mas a expressão do olhar o preenche inequivocamente, com frases como “Não sou mais teu amigo” ou “Não vou te convidar para o meu aniversário”.
Não está fácil, mas estou sustentando. Venho fazendo o mesmo em meu trabalho com a parentalidade, quando eu estimulo pais e mães a guardarem uma posição aparentemente antipática, de quando se dá limite para um filho. Não sei se estou misturando a etologia com uma psicanálise que preconiza a capacidade de, como cuidadores, podermos aguentar ser um “mau objeto”, o que, no fundo, é muito bom, por isso eu sigo agarrado no timão.
Sustenta-me acreditar que a vida não é imediata. É preciso esperar. É preciso investir. É preciso aceitar o difícil e cabe a alguém fazer o “serviço sujo”, em todos os âmbitos, e em todos os esportes. Não teríamos ganhado a Copa de 94 se não tivesse o Dunga e o Mauro Silva executando o tal serviço para que Bebeto e Romário pudessem desfrutar de gols decisivos. É o que venho tentando explicar ao Boris que continua inflexível, evitando o olhar, o abano do rabo e toda e qualquer brincadeira. Mas eu, que costumo duvidar, estou convicto de que, após o nosso jogo de forças, ele sairá mais forte para o seu futuro de cão.
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