Mas que pampa é este que recebo agora?
A pergunta que inicia a música “Herdeiro da Pampa Pobre”, de 1990, segue atual.
A canção, com letra de Vaine Darde e melodia do Gaúcho da Fronteira e transformada em rock pelos Engenheiros do Hawaii, tem no Pampa a sua referência. Esse bioma que, no Brasil, está concentrado unicamente no Rio Grande do Sul e, em sua extensão original, ocupava mais de 60% do território gaúcho.
Nós, gaúchos, temos orgulho tanto de nossas particularidades e idiossincrasias. Semeamos Centros de Tradições Gaúcha país e mundo afora. Enchemos a boca para falar de nosso churrasco, do chimarrão, de nosso linguajar com tantas expressões contrabandeadas dos nossos vizinhos platinos. Argentina e Uruguai compartilham conosco o gosto pelo mate, pela carne, por um estilo de futebol vigoroso, fronteiras e o Pampa.
Do nosso chimarrão, gosto que se espalha pelo Pampa, falarei pouco, até mesmo porque lhe são atribuídos “poderes afrodisíacos” e não vou ser eu o responsável por espalhar isso por aí.
Já a carne assada no churrasco ganha mais qualidade pelos pastos nativos. Pesquisadores da EMBRAPA dizem que a carne vinda do gado criado da forma tradicional é mais sustentável e saudável do ponto de vista nutricional que aquele criado confinado. Diz o chef Carlos Kristensen que “o pasto do nosso Pampa é uma alimentação fantástica para o gado, a carne fica mais saborosa quando os rebanhos são criados nas pastagens.”
Danilo Sant’Anna, pesquisador da EMBRAPA, retrata esse entrelaçamento entre o ambiente natural e a economia e cultura nele criada: “O Pampa é um ambiente naturalmente campestre, diverso e muito propício à atividade pecuária pastoril. E a figura do gaúcho, bem como sua cultura e tradição, se moldou por esse ambiente e por essa vocação para a pecuária.”
E daí chega mais um 20 de setembro, data que é comemorada a Revolução Farroupilha e celebrada a identidade gaúcha, o Pampa é cantado em verso e prosa, mas pouco se fala nele, o Pampa real. É algo que me parece bastante contraditório para quem tem a “missão de cultivar raízes”, pois o bioma está encolhendo.
E com isso, perde-se a biodiversidade, já que os pastos nativos do bioma abrigam inúmeras espécies: cerca de 3 mil plantas diferentes, 500 variedade de aves e também animais terrestres, incluindo espécies endêmicas. Além disso, a diminuição da área de pasto impacta diretamente no modo de vida tradicional e na pecuária familiar, além de comunidades quilombolas.
Os pastos encolhem e as grandes propriedades tomam conta da paisagem, em “um campo onde o patrão é rei, tendo poderes sobre o pão e as águas”, enquanto, ao tradicional peão, resta ser “esquecido” e viver “de pés descalço cabresteando mágoas”.
Estudos do Map Biomas mostram que, com relação à vegetação existente em 1985, os biomas que mais perderam vegetação nativa até 2022 foram o Cerrado (25%) e o Pampa (24%) sendo que o agro passou a ocupar 44% da área do bioma, principalmente, pela monocultura da soja, sinônimo de degradação ambiental. Por outro lado, o espaço ocupado por florestas plantadas foi multiplicado por 17 no mesmo período, fazendo temer que o carvão poderá ser, em um futuro próximo, o único item do churrasco com origem pampeana.
A grande contradição que se mostra é que, sendo o Pampa o ambiente que gera a cultura gauchesca, de onde vem seus símbolos e linguagem mais característicos e sendo nós tão cuidadosos de nossas peculiaridades e tradições, como pode estar ele tão abandonado?
Quando se fala em Porto Alegre como “capital do churrasco” ou se faz um Acampamento Farroupilha, não se pode esquecer que isso vem do Pampa e do seu entrelaçamento do gaúcho com os campos e os bois nele criados. Não é um parque temático gauchesco (outro projeto municipal) que tem as raízes dessa cultura, mas é o Pampa.
Por que não falarmos de um “ambientalismo gauchesco”, centrado na preservação do Pampa e de sua gente? Se isso não for feito, em breve, não haverá sequer uma Pampa pobre para herdar pois “desta pampa que me fala a história, não me deixaram nem sequer matizes.”