– Meu nome é Antony, eu tenho 52 anos, e sou adicto em Ozempic!
– Boa noite Antony.
– Não sei como cheguei até aqui, nasci magro, muito magro, e assim permaneci na adolescência. Aos 15 anos comprei uma calça baggy no shopping João Pessoa perto do meu colégio em Porto Alegre. Por causa das minhas pernas finas, elas pareciam uma bombacha dançando no vento. Tive a genial ideia de colocar dois abrigos por baixo e, apesar do calor, me sentia confortavelmente coxudo. Eu morava um pouco longe da escola, somente com meu pai, que trabalhava no centro, então eu almoçava no buffet livre na frente da parada de ônibus do colégio, ao lado do Instituto de Identificação da Polícia Civil, na Avenida João Pessoa. Comia muito, era meio frango com pele atravessado sobre aquela montanha de massa, com direito a uma repetição sem carne. Pra beber Coca-Cola ou Fanta Laranja.
– Às vezes eu ia no Zaffari da Ipiranga, que ficava perto da casa da minha amiga Patrícia, que também estudava no Julinho, e comia no restaurante do mezanino invariavelmente o Espetinho Misto: dois espetos com carne de gado, bacon, porco, tomate e linguiça cercados de batata frita, arroz e farofa. Com ele caia bem uma Coca-Cola de meio litro. E a barriga chapada continuava lá!
– Um dia tinha ido no dentista, que também ficava perto da casa da Patrícia, e logo em seguida fui caminhando até o Zaffari. Era inverno, estava com uma jaqueta de nylon azul, que vestia que nem blusão, sem zíper, e pedi o de sempre: Espetinho Misto e uma Coca-Cola grande. Você pagava no caixa, pegava a nota fiscal e aguardava na lateral. Peguei a Coca, encostei no balcão e passei a procurar uma mesa com os olhos. Fiquei com a impressão de que as pessoas estavam rindo de mim, mas logo tirei aquilo da cabeça porque não fazia sentido. De repente comecei a sentir as calças molhadas como se tivesse me mijado, então olhei pra baixo e vi que estava em um lago de Coca-Cola, pois minha boca anestesiada fazia eu me babar após cada tragada do refrigerante. Nessa altura, não era apenas o restaurante que ria de mim, até o pessoal da cozinha tinha interrompido o trabalho para participar. Tentei rir junto pra esconder meu constrangimento, peguei minha bandeja com o que tinha sobrado da minha dignidade e fui comer em uma mesa de pouca visibilidade. Magoado, mas magro, muito magro…
– Comecei a faculdade de Engenharia na PUC, que não era perto da casa da Patrícia. Como as aulas eram de manhã e de tarde, eu almoçava no RU. Lembro como se fosse hoje: magro, cabeludo, sorridente, pegando aquele bandejão de metal com vários compartimentos, entrando em uma fila, entregando o papelzinho de pagamento e ficando de cara com 4 serventes de olhar raivoso. Ofereci-lhe um bom dia efusivo e recebi – além do desprezo – uma colherada gigante de arroz; um passo ao lado e a senhora me atira uma conchada de feijão com a fúria de uma herege e, na hora, eu antevi meu rosto desfigurado, perda de 50% da visão, e um grão de feijão perene no meio da testa como um bindi indiano, mas eis que todo aquele caldo fervente encosta no compartimento da bandeja próximo à minha barriga, desliza como um tsunami até a borda e, antes da tragédia, inflete na direção de chegada em forma de onda formando um tubo perfeito; no fim, cai sobre si mesmo formando um plácido lago negro. Em êxtase recebo a almôndega e a salada nos seus respectivos cercadinhos da bandeja e me dirijo às mesas coletivas para fazer minha refeição. Nas mesas, jarras de plástico com água gelada da bica. Uma semana depois, já chegava no RU com a soberba dos veteranos, rosnava pras tias, que rosnavam pra mim (agora com uma ponta invisível de sorriso); fazia um olhar blasé quando o feijão era lançado, maldizia a qualidade da carne e ia se sentar no fundo para olhar o movimento, mesmo assim magro.
– Quando comecei a Faculdade de Direito ainda era magro e almoçava no centro perto do escritório de advocacia onde fazia estágio, no restaurante Sabor Latino, na Travessa Leonardo Truda. Os estagiários apelidaram carinhosamente o restaurante de Cachorro Latindo. O sistema era de buffet, mas eram os funcionários que serviam. O bife à milanesa era tão grande que as bordas ficavam para fora do prato e, pela quantidade de arroz que eles colocavam, eu ficava imaginando se aquele pessoal não teria passado fome em uma ilha deserta. Para coroar, um ovo frito. A salada você podia temperar com óleo de soja e vinagre. Seguia fiel à Coca-Cola.
– O estágio era no prédio anexo à Galeria Di Primo Beck na Avenida dos Andradas ou simplesmente Rua da Praia. Diziam que, antes do aterro, o Lago Guaíba ia até lá, por isso o nome. Não era nascido para dizer se era verdade. Ao lado do prédio, na esquina da Rua da Praia com a Rua da Ladeira, eu traçava um pastel com meio ovo dentro de lanchinho da tarde. A lancheria fechou e houve uma fofoca que usavam carne de rato no pastel, o que achei meio fantasioso pelo movimento do lugar e a quantidade limitada de ratos na região. Mas tudo bem, já tinha tirado a carteira de estagiário da OAB e a minha bolsa tinha melhorado, então podia me dar ao luxo de comer o Xis Bacon do Rib´s que ficava simplesmente na outra esquina da Rua da Praia com a Rua da Ladeira. “- Ó felicidade, não te reconheci quando estavas diante de mim!” A mostarda do Rib´s era e continua sendo uma lenda em Porto Alegre, tanto que o Rib´s fechou (Deus o tenha!), e a mostarda continua sendo vendida no Zaffari. E eu seguia magro.
– Saia do estágio e ia para a faculdade de direito na mesma PUC de antes, e chegando lá passava na lancheria do prédio 9 e pegava uma Pastelina e um café no copo de plástico e subia para a aula. Minha relação com esse salgadinho foi tão intensa durante a faculdade que, na formatura, a turma gritava Pastelina quando entrei no auditório. No recreio, tomava uma Coca e um salgado. Lá pelas 22h30 saia da faculdade rumo ao apartamento do meu pai no prédio Margarida, na Rua da República, na Cidade Baixa. Pegava meu Monza Hatch azul e seguia pela Avenida Ipiranga. Na esquina da Ipiranga com a Santana, passando um pouco o Planetário, tinham 3 traileres de XIS e espetinho. Eu era fiel ao Churrasquinho do Bigode. Estacionava o carro em cima da calçada que formava um boulevard naquele ponto. Pedia impreterivelmente o Ka-Churrasco de Xixo e uma cerveja Antarctica de garrafa. Bigode pegava o cacetinho atravessado por 2 espetos de madeira, mergulhava ele rapidamente em um balde com uma mistura de água, sal e vinagre, e colocava ele na churrasqueira para dar uma tostada enquanto o espetinho de Xixo ficava pronto. Depois sacava o pão, abria, colocava maionese, cebola crua e tomate e, nesse ninho, depositava o espetinho apertando a ponta do pão e puxando virilmente o espeto para liberar a carne. Então o Bigode perguntava: – pimenta e molho de alho? E eu respondia: “- Só alho e pra viagem”. Então ia pra casa com aquele K-Churrasco despejando cheiros maravilhosos no carro pra servir de janta. Às vezes era Xis, outras pizza, e o café da manhã era invariavelmente os restos da janta ou um cachorro-quente no centro. Apesar da exuberante rotina gastronômica, continuava magro que nem pau-de-virar-tripa.
– Daí a formatura, o trabalho, o primeiro juntar os trapos, e aquela magreza persistente… Lá pelos 30 anos, Deus desativou minha benção, então primeiro foram as bochechas que aumentaram e, depois, discreta, mas irrefreavelmente, a barriga começou despontar.
– Como aos 30 anos a empáfia da juventude ainda apita, eu não dava muita bola para aqueles quilinhos indesejáveis, pois afinal era fechar um pouco a boca, diminuir a cerveja e, em uma semana, estaria tudo resolvido. Dieta? Começo segunda-feira. A segunda nunca chegava, já que afinal eu estava tentando ganhar a vida.
– Daí vem a primeira separação de trapos e o encontro incômodo com o espelho, a chupada de barriga para a foto e o repertório de piadas que no fundo tendam dar um ar cômico à gordura: “calo sexual”; “tá ganhando dinheiro”; “estou em forma (oval)”; “deixa minha bordinha de catupiry”…
– Mas para aquele jovem adulto que procurava perpetuar a espécie no serviço de namoro do “Almas Gêmeas” no Terra, o antepassado dos Tinders e Happns, o assunto finalmente era prioridade. Então foram as pílulas de casca de camarão cubana, apresentadas na televisão por aquele casal de jaleco branco, que explicavam como as fibras do crustáceo envolveriam a gordura para impedir que ela fosse absorvida no intestino e acabasse eliminada in natura quando você fosse levar o amigo-do-interior-pro-rio. Não deu certo! Bem que o rosto do casal de jaleco me era familiar de algum pornô nacional.
– Resolvi ir na nutricionista para voltar aos velhos tempos. Procurei no convênio uma médica, porque tinha certo constrangimento ir consultar um homem já que o assunto ainda me parecia frescura. Consegui uma consulta na rua paralela a Avenida 24 de Outubro, que desemboca na Rua Silva Jardim. Atendimento expresso de convênio: depois de uma pesagem e meia dúzia de perguntas, a profissional saca da gaveta uma folha com as refeições que eu devia fazer. Chorava por dentro quando li sobre as duas colheres de arroz. Aquilo não podia sustentar um homem de 1,83m!!!! Em 48 horas o regime estava sepultado!
– E o tempo foi passando, a barriga aumentando, até que conheci o Ozempic! Era final de tarde, o tempo estava agradável, eu caminhava ensimesmado pela praia chutando as ondinhas, quando olhei pra frente e me deparei com o Ozempic. O mundo ficou congelado por alguns segundos que pareceram horas. Senti aquele aperto na barriga das paixões adolescentes e, sem me dar conta, comecei a correr em câmera lenta, em meio ao gelo seco, até ele, o abracei e caímos no mar rolando ao sabor das ondas… Ok, licença poética, mas foi bem legal o encontro.
– Então tudo começou como uma brincadeira: 0,25 mg, uma vez por semana, aplicado por injeção na barriga. Pra minha sorte a agulha é bem pequena, já que uma vez quase desmaiei no Laboratório Weinmann quando fui tirar sangue. Aquele acesso parou de encher os tubinhos e a enfermeira tirou da gaveta uma injeção de temperar peru no Natal, onde tranquilamente cabiam 2 litros e, com olhar psicopata, me disse que ia ter de puxar o sangue… Pedi para beber água e fui rolando na parede até o bebedor vendo bolas pretas no ar. Voltei e a maldita ainda perguntou irônica: “- tá com medo?”. E eu respondi: “- não, tô com sede!” E rosnei com cara de valente: “- pode tirar o sangue!”
– Quando passei o Oze para 0,5mg vieram alguns enjoos, mas, afinal, nenhuma relação é perfeita. Além disso, meu Tudão já tinha feito eu perder 3 quilos!!! Passei a escolher a mesa perto do banheiro para se tivesse de chamar-o-hugo no meio da refeição. Era tudo muito rápido! Uma vez no Galeão, no Rio, estava almoçando e o semáforo foi pro amarelo, então me levantei, procurei desesperado o banheiro e nada. Comecei a correr e, quando vi uma plaquinha de sinalizando um banheiro feminino, com o hugo já forçando a porta, na crença que teria um masculino do lado, entrei no corredor derrapando: era só o feminino mesmo. Então golfei em forma de meia-lua na parede algo que de longe poderia ser confundido com arte abstrata.
– Depois fui me acostumando com o Danadinho, passei para 0,75mg, depois 1mg, e voltei aos tempos de colégio com meio século de existência. Comprei uma sunga branca na C&A, uma meia soquete pra dar volume na Netshoes e fui caminhar na praia de Capão da Canoa ouvindo o vento assoviar nos gominhos do meu abdômen negativo.
– Só sei que não vivo mais sem ele! Outro dia fui na farmácia e o cara me disse que o Oze estava em falta. Falou em voz baixa e tom confessional que tinha gente o usando pra emagrecer, apesar de ser para diabetes. Por um segundo eu me descontrolei, arranquei ele detrás do balcão pela gola gritando: “- mentiroso, me dá meu Ozempic, danem-se os diabéticos”… Logo voltei ao normal e sai com meu corpo de Apolo farmácia afora. Então vaguei de farmácia em farmácia, já com as mãos trêmulas, suando, cheguei a pensar em oferecer meu corpo perfeito em troca de uma dose, mas, antes disso, consegui uma caneta do Oze na Droga Raia da Rua Casemiro de Abreu junto ao posto de gasolina.
– Ontem me peguei chorando no banho enquanto lavava minhas cuecas no tanquinho do meu abdômen imaginando que aquela caneta iria acabar. Tenho medo de fazer uma besteira. De qualquer jeito, comecei bronzeamento artificial pra se tiver de usar meu corpo em uma negociação de Oze.
– Será que tem cura?
Nessa altura, todos se levantaram das cadeiras chorando copiosamente e fui cercado por aqueles corpos esculpidos por Michelangelo de abdomens negativos. Recebi calorosos abraços de braços torneados e ouvi: “- Estamos com você Antony, estamos com você Antony.”
Foto da Capa: Karolina Grabowska / Pexels