Sempre fico tocado quando alguém diz não saber mais quem é.
Nem sempre isso tem um tom negativo. Há momentos da vida em que não saber quem se é pode ser o ponto de partida para uma outra forma de estar no mundo. Mudar o guarda-roupa, fazer uma tatuagem, ouvir músicas diferentes… tudo isso pode ser um sinal de que uma imagem antiga de si está se despedindo, abrindo espaço para que se contemple um outro reflexo no espelho.
Entretanto, tenho recebido no consultório um número significativo de jovens adultos, em geral nos seus vinte e poucos anos, que trazem com profunda angústia essa sensação de perda de identidade.
Aos poucos, fui percebendo que havia algo em comum entre estes pacientes: são indivíduos que desde a sua infância foram medicados com psicofármacos, na maior parte das vezes, com Ritalina. Eram crianças que não se adaptavam à escola ou que tinham alguma dificuldade para estudar e que, infelizmente, foram muito rapidamente diagnosticadas com TDAH, o famoso transtorno de déficit de atenção e hiperatividade.
Crescidos na década de 90, estes jovens viveram a popularização da Ritalina no Brasil. Foi por estes anos que os psiquiatras e neurologistas passaram a prescrever de forma mais ostensiva este remédio. Junte-se a angústia de pais e escolas com a oferta de uma medicação supostamente milagrosa, e temos um cenário bastante mais temerário. Crianças que não se adequavam ao modelo tradicional de ensino – já na época bastante defasado, diga-se de passagem – passaram a ser medicadas para serem “consertadas” em seus supostos desvios.
Não quero entrar novamente na polêmica sobre o TDAH (já falei disso em outra coluna AQUI), mas quero compartilhar com o leitor algumas impressões a respeito dessa Geração Ritalina.
O que tem me chamado a atenção é especialmente, como falei no começo desta coluna, uma certa sensação de exílio de si que muitos destes pacientes trazem consigo. Uma dificuldade muito grande de contar a própria vida, de narrar a si mesmos através de um vocabulário próprio e, peço especial atenção a este ponto, sem ter sua história atravessada pelas drogas que lhes foram prescritas.
É claro que a medicação psiquiátrica pode ter efeitos muitos importantes para pacientes em sofrimento – muitas vezes, inclusive, estes remédios literalmente salvam vidas. O problema é quando a prescrição surge mais como uma forma de alívio de angústia dos pais, da escola ou do próprio médico do que como um recurso para auxiliar aquele que efetivamente sofre. Medicar, muitas vezes, é uma forma de sentir que se está fazendo algo pelo outro, de que não se vai deixar alguém desamparado. É uma boa intenção, mas se este ato não vier acompanhado de uma postura crítica do contexto social, pode acabar produzindo um esvaziamento de sentido daquele que é tratado.
São justamente casos como estes que eu tenho acompanhado na minha clínica cotidiana.
Jovens que parecem ter substituído as suas próprias palavras por aquelas das bulas do remédio. Pessoas que falam de si utilizando termos médicos, que dizem não saber “qual o seu estado basal” – ou seja, que não sabem quem são sem estar medicados, dado o tempo em que têm a sua condição neuroquímica modulada.
Não raro, estar medicado não é uma condição temporária, mas acaba se tornando uma forma de viver a vida. Como nos casos daqueles que começaram tomando Ritalina na infância e que, mais velhos, não conseguem dormir sem tomar Zolpidem, relaxar sem fumar maconha, se manter acordado sem uma boa dose de cafeína, ou mesmo transar sem tomar um Viagra “preventivo”.
Insisto: não estou criticando a medicação em si, ou mesmo o uso recreativo de drogas, mas coloco em pauta a preocupação com o fato de que medicar-se parece ter se tornado, para muitos, um estilo de vida (ou um lifestyle, como está na moda falar).
Quando toda a nossa rotina parece depender do consumo de uma ou outra substância, o que vemos é uma profunda alienação de si mesmo em uma lógica médica. O corpo se torna não um meio de experienciar o mundo, mas uma espécie de laboratório higienizado por um discurso que priva o sujeito de experiências fundamentais como o sofrimento, a tristeza, o pesar. Claro que todos nós gostaríamos de viver em um nirvana permanente, mas isso certamente tornaria a nossa aventura aqui no mundo bem menos interessante – e mais padronizada.
Além disso, também vale pensar o quanto estas medicações acabam tendo o efeito de um doping, de uma substância que produz um suposto aperfeiçoamento da performance (estudar melhor, estar mais atento…), e não uma função terapêutica, como seria esperado.
Aí, vale a questão: o que significa performar melhor em uma época que nos demanda que sejamos produtivos, rápidos e felizes o tempo todo? Qual o lugar da vivência singular quando alguém está alienado de si há tanto tempo que não consegue mais sequer saber qual imagem enxerga no espelho?
Estar exilado de sua própria história é um efeito colateral aceitável para estar mais adequado a um mundo cujas demandas são cada vez mais desumanas?
Temos aí toda uma geração para nos ajudar a pensar estas questões.