O quarto era pequeno e sem janela, numa casa pequena, de poucas portas, numa viela estreita e escondida, na rua. Casa grande era a de Girassol: alpendrada, muitos quartos, cada qual com sua janela e porta, que dava sempre para outra porta, que levava à grande sala que começava na larga porta de entrada.
Colchão gasto, cama estreita, cama pequena para corpo pouco. Da qual não se vê o giro do sol: o dia e a noite têm uma luz só, a luz de uma lâmpada amarelada…
O corpo na cama discrepava da voz que se ouvia: o amaro e o grave da voz. Aquele já foi Luiz.
Luiz fora administrador do engenho. Final da quinzena, Girassol era apinhado: todos ao escritório para receber a paga. Luiz, revolver nos quartos, ordenava a coisa. Não tinha carteira, não tinha contrato, não tinha papel: Luiz era quem ordenava. Depois de Donana e do pai, era Luiz quem mandava: era o mais velho.
Roberto era o do meio: o mais novo saiu dali, foi para o Rio de Janeiro, era o filho de quem pouco se falava. Luiz era queimado, Roberto, agalegado; eram dois homens formosos. Luiz era alto, braços e pernas longos e músculos marcados da lida no engenho. Roberto era médio, nem alto nem baixo, nem gordo nem magro: era roliço e vermelho.
Agora, Roberto está amarelo e Luiz apagado de cor. Os irmãos não se viam há anos. Roberto foi para Recife, fez dinheiro, abriu negócio e comprou terras. Luiz ficou. E viu a cana cair de preço e viu o governo cobrar a carteira dos trabalhadores. De Girassol, só não conseguia ver direito que o açúcar que vinha de São Paulo era mais barato do que aquele tirado dos partidos de cana dos morros da Mata Pernambucana.
Foi a sobrinha que disse a Roberto que seu irmão estava nas últimas. Ele relutou em voltar para lá. Só foi nos enterros dos pais e da madrinha, nem para o do padrinho foi… Ninguém insistiu, ninguém falava nada: quando alguém chegava de Luiz, ele não perguntava e, se pouco dissessem, logo se fazia de já satisfeito. Da família de três homens e quatro mulheres, vivos e morando no estado, só ele e Luiz… O irmão mais novo morreu de acidente, uma das irmãs morreu no parto, duas se casaram com homens de fora e uma amigou-se e foi para São Paulo. Agora, só tinha ele e Luiz.
Lizinha era a filha solteirona, ficou para ela cuidar da mãe e do pai. Luiz tinha que ser asseado duas vezes ao dia: o calor é grande e o quarto abafado… Luiz, de voz enfraquecida e trêmula, ainda tentava ordenar a limpeza de seu corpo fétido… Porém, já há muitos anos que Lizinha não dava conta do velho que estava ali: limpá-lo era mecânico.
Mas o recado de que Roberto viria correu logo. E foi de repente: disseram pelo meio da manhã que ele chegaria antes do meio-dia. Lizinha corre para assear o pai, trocar-lhe os panos e passar um pano de cheiro na casa.
Depois dos cumprimentos ao séquito que acompanhava Roberto, constituído por uma mistura de parentesco, trabalho e bajulação, Lizinha mostra a ele o canto onde está o irmão.
Roberto vê um corpo na cama. Mas a voz que se ouvia discrepava do corpo frágil, magro e esmaecido: era a voz amara e grave de Luiz.
“Lula…”
“Beto…”
É a saudação. Há tempos que Luiz não consegue se levantar: braços e pernas secaram. Não teve aperto de mão. Mas teve a voz ordenadora de Luiz: “Senta, Beto…”.
Do tamborete, Roberto fica da altura do corpo deitado. A cama alta, cama de hospital, fora uma deferência do primo que, quando Secretário de Saúde do município, emprestou à família do ente enfermo.
Acotovelados atrás de Lizinha, a corte de Roberto se espremia pelo ínfimo espaço que restara entre a cama e a porta, extensão muito menor que a já minúscula área reservada ao conforto do tamborete assentado por Roberto.
Silêncio.
Luiz passa seu rabo de olho, como há tempos já não fazia: ninguém mais fica no quarto, além de Roberto.
Silêncio. Há uma conversa que não dá para ser escutada.
Não pelo imenso esforço auditivo do staff, mas pela espessura da velha parede de tijolo manual, da grossa porta de madeira de lei e do desestimulador olhar de Lizinha, que se posiciona entre a porta e o grupo.
Dali a pouco, se ouve Roberto levantar-se. “Até mais, Lula”: se escuta propositalmente audível.
“Até, Beto.” “Tome um pequeno antes de ir.”
“Obrigado, Lula, ainda tenho que voltar para Recife hoje.”
Dias depois, Luiz morre.
Roberto não foi para o enterro: ficou em Girassol. Propriedade que pouco visita, que está quase abandonada e que ficou como sua porque comprou barato a parte das irmãs (ele arrumou os casamentos com rapazes da faculdade), transferiu para si a propriedade do irmão mais novo e se apropriou dos lotes de Luiz, que morreu sem ainda entender a papelada que um dia havia assinado, que ordenava, mas não entendia dessas coisas que os homens mansos que vêm de Recife entendem…
Todos os textos de André Fersil estão AQUI.
Foto da Capa: Gerada por IA.