Aqui estamos nós, como ácaros na casca de uma ameixa. E a ameixa é este pequeno planeta que viaja em torno de uma estrela insignificante, o sol, que se localiza nos limites obscuros de uma galáxia comum, a Via Láctea, que contém 400 bilhões de outras estrelas. E essa galáxia é apenas uma em cerca de 100 bilhões de outras galáxias que compõem o universo. Portanto a ideia de que nós somos centrais, que o universo existe por nossa causa, é patética. (tradução livre de uma entrevista do astrônomo Carl Sagan)
Pois Marcelo Gleiser, em seu novo livro: O Despertar do Universo Consciente: Um Manifesto para o Futuro da Humanidade2, como escreveu meu colega aqui da Sler, Luis Felipe Nascimento (leia aqui), baseando-se principalmente numa entrevista do autor no programa Roda Viva está propondo que abandonemos o que ele chama de “copernicanismo”, numa referência a Nicolau Copérnico que, no século XVI, desafiou a igreja e o senso comum ao afirmar que a Terra girava em torno do Sol. Gleiser propõe que abandonemos essa visão e adotemos uma nova, que ele chama de “biocentrismo” na qual a vida e os seres humanos voltem a ocupar um lugar central em nossa visão do universo.
Ele afirma: o universo só tem uma história porque estamos aqui para contá-la. Já consigo imaginar o Carl Sagan franzindo o rosto.
Antes de prosseguir, vamos para algumas observações sobre a carreira do Marcelo Gleiser. Ele é o nome que mais aparece nas pesquisas que pedem para as pessoas citarem um cientista brasileiro (ainda que só 10% dos entrevistados consigam dizer algum nome). Além de trabalhar intensamente com divulgação científica, é um astrofísico brilhante e um escritor talentoso. Um de seus melhores livros, na minha opinião, é o “Criação Imperfeita” em que mostra que pequenas imperfeições no plasma original levaram ao desenvolvimento de um universo heterogêneo, que é essencial para o surgimento de estrelas, planetas e seres complexos, como nós.
No entanto, nos últimos anos, Gleiser tem falado muito sobre espiritualidade. Nesse caso, trata-se de uma espiritualidade, não religiosa, ligada ao deslumbramento diante da complexidade e da beleza da vida e do universo. Mas, dependendo de como ela é apresentada, ou de quem ouve, essa abordagem se aproxima perigosamente de uma indesejável mistura entre ciência e religião.
Um Prêmio que não é o Nobel
Marcelo recebeu em 2019 o Prêmio Templeton, que é visto com muita desconfiança pela maioria dos cientistas. A Fundação Templeton é uma organização inglesa, que tem entre seus objetivos desenvolver a espiritualidade e incentivar a interseção entre a ciência e a religião.
O Prêmio Templeton é agraciado para uma pessoa que “fez uma contribuição excepcional para a afirmação da dimensão espiritual da vida, seja através de uma introspecção descoberta ou trabalhos práticos”. O prêmio, que hoje é chamado apenas de Prêmio Templeton, até 2001 era conhecido como Templeton Prize for Progress in Religion, e premiava mais religiosos. De 2002 a 2008 ele foi chamado de Templeton Prize for Progress Toward Research or Discoveries about Spiritual Realities (percebeu?), e desde então têm premiado mais cientistas, a maioria com trabalhos se propondo a compatibilizar ciência e religião.
Gleiser embolsou 1,4 milhão de dólares com o prêmio. Seu valor é sempre superior ao recebido pelos ganhadores do Prêmio Nobel, porque John Templeton, o fundador da organização, acreditava que “a espiritualidade era ignorada” nos prêmios Nobel. Não sejamos ingênuos. A Fundação Templeton é uma organização religiosa, e para mim é difícil aceitar que dariam o prêmio a quem não promovesse alguma forma de religiosidade.
Ciência e religião não são compatíveis
A ciência se dedica ao estudo do mundo físico, e não há nela espaço para o sobrenatural. Até agora, não temos nenhuma evidência de que seres superiores ou qualquer outra força sobrenatural interfiram de alguma forma no universo. E ciência, como você sabe, se baseia em evidências.
Religião é uma escolha pessoal. Há cientistas que encontram formas de compatibilizar a crença “num ente superior” com sua atividade como cientista. Eu poderia encher muitas páginas explicando como eles e elas justificam sua opção como “algo que daria sentido a tudo que observamos” ou “há regras morais que parecem ser universais”. Como eu disse, trata-se de uma opção pessoal. Mas tentar compatibilizar conceitos científicos e religiosos é ruim, quando não perigoso.
Voltando à Fundação Templeton, a coisa fica ainda pior. A Fundação financia projetos criacionistas! O criacionismo é uma crença que afirma que o universo e a diversidade de vida na Terra foram propositadamente concebidos por uma entidade divina ou forças sobrenaturais, opondo-se à teoria da evolução. O Criacionismo representa o que há de pior no movimento anticiência. E é forte. Nos Estados Unidos, os criacionistas conseguiram obrigar as escolas de alguns estados a ensinar a “teoria” criacionista como opção à teoria da evolução!
Gleiser justifica (o fez no programa Roda Viva) dizendo que eles também financiam projetos científicos. Inclusive dele. Sério? Essa é a justificativa dele para esse vínculo com uma organização religiosa criacionista?
Biocentrismo
Mas, depois de uma longa digressão, vamos agora ao ponto principal do livro do Gleiser. Ele explica assim sua proposta do “biocentrismo”: Um universo sem vida é um universo morto. Um universo sem mentes não tem memória. Um universo sem memória não tem história. O surgimento da humanidade marcou o nascimento de um universo consciente, um universo que depois de 13,8 bilhões de anos de expansão silenciosa encontrou uma voz para contar sua história.
Eu fico sinceramente chocado com tanta pretensão. Num universo com trilhões de estrelas em que a química da vida e outros fatores que encontramos na Terra ocorrendo por toda a parte o universo depende de nós para ser consciente? Gleiser prossegue nesse raciocínio explicando como o aparecimento de vida complexa, e depois de seres conscientes (nós), na Terra dependeu de uma série de circunstâncias extremamente raras e que, por isso, nós somos especiais.
Em parte, ele tem razão. A vida é rara no universo. Mas também deve ser comum. A explicação para esse aparente paradoxo está nos números que apresentei acima. 400 bilhões de estrelas só na Via Láctea e 100 bilhões de galáxias no universo. O fato de não termos encontrado sinais de vida inteligente até agora se deve, provavelmente, à raridade da vida, pelo menos em suas formas mais complexas, pois, como Gleiser aponta, são de fato necessários muitos fatores convergentes para que ela ocorra, e às grandes distâncias entre as possíveis civilizações. Se considerarmos que a velocidade da luz é a velocidade limite do universo (e é) levaria milhões de anos para que uma mensagem nossa, por exemplo, chegasse a outra civilização. E milhões de anos para que recebêssemos sua resposta. E só faz um pouco mais de 100 anos que conseguimos enviar alguma mensagem para o espaço!
Portanto, Copérnico estava certo, Newton estava certo, Darwin estava certo, e Einstein, e Sagan. Nós não somos o centro de nada, e não somos relevantes para o universo. Se desaparecermos amanhã, o universo vai seguir seu rumo, provavelmente com outros seres inteligentes vivendo em planetas muito distantes, que jamais saberão de nossa existência.
Gleiser usa a sua proposta de biocentrismo para dizer a vida é preciosa, que nós somos especiais, e que temos que cuidar da Terra, pois ela é a única casa que temos. Ele está absolutamente correto. Só não acho que é preciso atacar o pobre Copérnico para concluir isso.
Mas seu biocentrismo traz outra contribuição importante. Ele se propõe a resgatar o entendimento de que nós somos parte da biosfera, e não entes separados que podem fazer da natureza, e do planeta, o que bem entenderem. Ele está correto, sem dúvida. Mas aí flerta perigosamente com uma condenação da ciência. Como se fosse a ciência que tivesse pregado a separação dos humanos do resto da natureza. A ciência nunca fez isso. Quem fez foi a Bíblia, e depois os desenvolvimentistas encantados com o poder das máquinas. A ciência, pelo contrário, tem apresentado cada vez mais evidências da interdependência dos seres vivos.
A Proposta
Na parte final do livro Gleiser apresenta sua proposta para “salvar o planeta”. Ele diz que está cansado de “visões apocalíticas e alarmistas” (pergunto: é alarmismo mostrar o que realmente pode acontecer?) e que é hora de agirmos.
Propõe que não devemos esperar que os governos resolvam as coisas para nós, e que a solução é agir “de baixo para cima”, ou seja, as grandes mudanças viriam a partir da ação das pessoas. Assim, propõe “Um Manifesto para o Futuro da Humanidade” em que apresenta três princípios para se atingir a sustentabilidade:
- O princípio do menos para garantir a sustentabilidade: cada pessoa deve analisar criticamente o que come, como usa energia e água e quanto lixo produz e recicla. A abordagem deve focar no menos: menos carne, menos energia, menos água, menos lixo.
- O princípio do mais para nos reaproximar do mundo natural: sempre que possível, as pessoas devem se engajar mais com a natureza. A abordagem deve enfocar no mais: mais consciência da vida e dos processos naturais que ocorrem à nossa volta, mais gratidão pelo planeta que nos permite existir, e mais compaixão e bondade para com todas as formas de vida.
- O princípio da consciência na compra e no consumo de produtos e bens: Consumidores têm o poder de influenciar as práticas empresariais. Se consumidores não consumem os produtos de certa empresa, suas vendas caem e essa corporação é forçada a mudar suas práticas. Quanto maior o número de pessoas que compram produtos de empresas que adotam práticas sustentáveis, mais os preços de seus produtos vão cair, tornando-se acessíveis a um número maior de consumidores.
Eu não poderia concordar mais com essas premissas. Acho que todos nós devemos nos envolver na luta para preservar o planeta, e agir da maneira que Gleiser recomenda acima é o mínimo que podemos fazer. No entanto, ao ficar restrito ao que ele chama “ações de baixo para cima”, e acreditar que basta as pessoas agirem desse modo para resolvermos os problemas é, como observou a jornalista Giovana Girardi no programa Roda Viva, no mínimo, muita inocência. Ignora as forças poderosas que atuam contra o esforço de sustentabilidade, como eu e outros colegas da Sler temos exposto em nossas colunas, e descrevo em detalhes no meu livro “Planeta Hostil”3.
O Melhor Caminho
Preciso deixar uma coisa clara depois dessas minhas críticas ao trabalho do Marcelo Gleiser. Eu o considero, como disse lá no início, um cientista excepcional e um escritor e comunicador extremamente talentoso. E tem prestado uma valiosa contribuição à sociedade ao alertar sobre a necessidade de mudarmos a maneira de explorar o planeta. Apenas torço para que ele abandone esse caminho de tentar encontrar conceitos de espiritualidade que satisfaçam a todo mundo e volte seu foco à ciência e sua divulgação. Quem sabe assim ele não ganha um Prêmio Nobel? Seria muito bom para um país que não tem nenhum.
Em resumo, os dois excepcionais cientistas e escritores que mencionei aqui, Carl Sagan e Marcelo Gleiser, concordam e tem razão em uma coisa: temos que cuidar do nosso planeta e da vida que ele abriga. E nós, os únicos seres conscientes que até agora viveram sobre a Terra4, somos de fato especiais. É urgente agirmos com firmeza para salvarmos o planeta de uma degradação ambiental que pode destruir a maior parte da vida que existe nele. Só não comece a se achar demais. Você continua sendo um ácaro na casca de ameixa5.
Notas:
1A Dança do Universo é o título do primeiro livro do Marcelo Gleiser (publicado em 1997 pela Companhia das Letras), cujas ideias mais recentes são o tema desta coluna.
2Marcelo Gleiser, O Despertar do Universo Consciente: Um Manifesto para o Futuro da Humanidade, Editora Record, 2024.
3O livro “Planeta Hostil”, foi publicado pela Editora Matrix, de São Paulo. Pode ser adquirido no seu site: matrixeditora.com.br e na Amazon.
4Essa afirmação, na verdade, não é bem correta. Outros animais, como baleias, golfinhos, macacos, elefantes e certas aves, dispõem de algum tipo de consciência, embora nós, de um modo um tanto antropocêntrico, as consideremos mais “limitadas”. Ainda assim, não me parece que tenham noção da existência do universo como nós o entendemos.
5Ainda assim há aqui uma questão de perspectiva. Um ácaro é um bichinho insignificante, mas muitos ácaros podem incomodar bastante! Ácaros unidos…
Observação final: Para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
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Foto da Capa: Freepik