Era janeiro de 2001 e eu trabalhava como repórter na redação da TV Bandeirantes no Rio Grande do Sul. Vinha no embalo da cobertura da festa da virada de ano no Centro Histórico, com queima de fogos e festa ao redor da Usina do Gasômetro. À meia-noite, comi lentilha em marmita e brindei com refrigerante. Feliz. Lembro do orgulho de cumprir escala enquanto boa parte dos amigos e familiares festejavam no Litoral. Assim é a vida de jornalista e eu me forjava ali uma profissional da notícia, celebrando um ano de graduação.
Mas o ano não seria de trégua por muito tempo. O Rio Grande do Sul era reduto de esquerda na época em que o PT fazia oposição ao PSDB e as diferenças políticas cabiam dentro do espectro político democrático, guardando distância dos extremos. E janeiro chegou com o fortalecimento de ações Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) reivindicando desapropriação de terras improdutivas. Fernando Henrique Cardoso, então presidente, havia freado as ações ao determinar a suspensão da vistoria de terras. Nesta época, o tema era pauta recorrente e, na redação, as reuniões de pauta travavam acaloradas discussões: afinal, estamos cobrindo ocupações ou invasões do MST?
Até que naquele janeiro de 2001, João Pedro Stedile resolveu a questão: invadiu a fazenda Monsanto, em Não-me-Toque, no interior do Rio Grande do Sul e destruiu dois hectares de plantação de soja. No local havia 22 experimentos de soja transgênica autorizadas pelo CNTBio (Conselho Nacional de Biotecnologia), porém o MST era contrário ao avanço das sementes geneticamente modificadas e futura comercialização. Foi uma invasão de propriedade privada com destruição e depredação. A partir deste dia, adotamos nos textos jornalísticos invasão quando houvesse entrada sem autorização em propriedade produtiva, de forma violenta ou não autorizada, e ocupação quando um local fosse tomado sem resistência porque está desocupado. O MST tinha as duas práticas, ainda que discussões jurídicas pudessem ser travadas em um ou outro caso.
Corte para janeiro de 2023. Mais de 20 anos depois da virada do século, o meu Réveillon foi na praia neste 2023. Foi do Litoral que assisti pela televisão a posse de Lula, a passagem de faixa simbólica feita por minorias representando a diversidade do povo, a polêmica roupa escolhida pela Janja, a primeira-dama que prefere ser chamada de esposa, e o mar vermelho que tinha pontos verde e amarelo, em especial, quando a bandeira deitava por cima da multidão. A maioria vermelha era do MST e outros movimentos sociais. Por mais que o governo reivindique o símbolo nacional de volta, os apoiadores não se convencem em vestir as cores nacionais. Até não tem relação direta, ou talvez tenha, mas uma semana depois o mesmo local foi tomado pelas cores nacionais, e foi vestindo o nosso símbolo maior da nação que uma multidão invadiu as sedes dos Três Poderes e provocou uma depredação nunca antes vista na história de Brasília, nossa capital federal.
No domingo, 8 de janeiro, eu estava em casa em Porto Alegre e assisti pela televisão em tempo real, absolutamente estupefata, a invasão do ódio, do desrespeito, do mau-gosto, da violência que tomou conta e fez o derramamento dos piores sentimentos contra o patrimônio material e imaterial do nosso país, as edificações das instituições democráticas que ali representam a democracia, o pluralismo, o debate de ideias e tudo aquilo que se opõe à violência e à maldade que subiu a rampa do Planalto, adentrou o Congresso Nacional e dilacerou o Supremo Tribunal Federal (STF). Ficamos aterrorizados! Mas seria essa uma ação terrorista? Provavelmente, os jornalistas que faziam a cobertura ao vivo, no plantão de final de semana, não puderam discutir qual linguagem usar, definir a terminologia mais adequada e chegar a um consenso editorial para posicionamento como grupo de imprensa. Possivelmente reinou o mimetismo midiático, ou seja, um veículo de referência usou o termo terroristas primeiro e os demais o seguiram. O mimetismo é a prática que torna muitos jornais “parecidos” nas escolhas de destaques noticiosos. Eu, com o controle remoto em mãos em pleno zapear desenfreado em busca de informação, ouvi repórteres, âncoras e comentaristas chamarem os invasores de terroristas, em pelo menos três canais de allnews e duas emissores de TV aberta.
Terroristas, manifestantes ou golpistas? Após o susto do factual, o jornalismo vai aos poucos transformando o fato – invasão e depredação das sedes dos Três Poderes – em informação contextual – qual a definição e limite de terrorismo, golpismo e manifestação – para dar conhecimento do acontecimento do dia 08 de janeiro. É pedagógico. O jornalismo também tem uma função didática, como fica evidente. A imprensa nos ensina a cada cobertura como os acontecimentos se desenrolam e são narrados e como é possível diferenciar os fatos das mentiras. Algumas coberturas são mais exemplares que outras e nos permitem avançar para compreender não apenas como funciona o processo noticioso, mas também a consolidação de linhas editoriais das empresas de mídia.
“Bolsonaristas extremistas podem ser denunciados por crime de golpe de Estado” estampava a manchete da Carta Capital. O posicionamento editorial crítico adotou a referência de bolsonaristas terroristas, ainda que a cobertura deixe claro que na tipificação de crimes cometidos não esteja terrorismo. O mesmo termo foi usado no portal G1. O UOL foi além e entrevistou especialistas para perguntar se é possível enquadrar os invasores em atos terroristas. O texto explica que a finalidade de provocar o caos pode ser considerada um ato terrorista, mas a legislação antiterrorista de 2016 não se aplica ao fato de 8 de janeiro. Portanto, os invasores não podem ser punidos como terroristas pela lei brasileira. Talvez a lei precise ser revista, mas esta é outra questão. O UOL é do Grupo Folha e a Folha optou por adotar golpistas, assim como o Estadão e O Globo. O temo foi o melhor justificado pelas fontes jurídicas já que o ato de vandalismo e depredação foi contra as edificações-sede dos Três Poderes que constituem o Estado Democrático de Direito: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A Gazeta do Povo, no extremo oposto, refere-se aos vândalos que quebraram o Congresso, o Planalto e o Congresso como manifestantes e ponto, com variações como se referir a “presos por vandalismo”. Nenhum qualificador como extremistas, menos ainda bolsonaristas. É didático, a Gazeta tem direcionamento editorial explícito e a linguagem expressa o posicionamento político.
O jornalismo tem uma função pedagógica e os atos golpistas de 8 de janeiro também. As diferenças entre os veículos citados neste texto evidenciam que há subjetividade na cobertura objetiva do fato, por exemplo, na escolha das palavras. Porém, o jornalismo profissional não nega os fatos ou inventa outros, como a morte de idosa que circulou em redes de fake news e foi desmentida pela imprensa. Aprendemos também que o jornalismo é essencialmente democrata: só existe imprensa livre em uma democracia forte. O golpe frustrado foi também midiatizado: tv, rádio, internet, telefones individuais produziram milhares de imagens e a depredação foi assistida como notícia internacional em diversos idiomas, manchando a imagem e reputação do brasileiro cordial. Assim funciona a imprensa livre no Brasil e no mundo. Quando a democracia está sob ameaça, a imprensa também estará, por isso não é exagero dizer: os valores democráticos são também os valores jornalísticos.