Aproveitei bastante do recesso de fim de ano na frente da televisão, algo que há algum tempo eu não fazia.
Como o leitor sabe, essa é uma ótima época para quem curte maratonar aquela série indicada por um amigo ou para ver os filmes para os quais não se encontrou tempo durante um ano corrido. Escolhi uma terceira alternativa: me permiti o prazer culpado (seria essa a melhor tradução de guilty pleasure?) dos reality shows ruins.
Pensando bem, não sou lá muito fã da ideia de “prazer culpado”: não seria essa mais uma forma de nos punirmos por não estarmos sendo produtivos? Quais seriam os prazeres não culpabilizantes dentro desse sistema que pede que estejamos o tempo todo trabalhando ou praticando o “ócio criativo”, expressão que detesto com todas as minhas forças? Mesmo com todo o avanço tecnológico, com tantas páginas e mais páginas escritas pelos sociólogos, pelos antropólogos, pelos psicólogos, pelos psicanalistas e por tantos outros, ainda assim parece não haver nada mais temível para capitalismo tardio do que um corpo inerte. Ou, pior: um corpo que sente prazer.
Enfim, “tergiverso”, como diriam os colunistas eruditos.
Fato é que um destes programas que me deixou deliciosamente imóvel deitado no sofá frente à televisão foi a nova temporada do Casamento às cegas: Brasil”.
O que eu esperava encontrar ali? Ora, exatamente o que eu tinha visto na temporada passada e na versão americana do reality: pessoas horríveis fazendo coisas estúpidas. É sempre bom quando são os outros que erram.
Para o leitor leigo no tópico “reality show ruim”, explico a premissa da atração: dezesseis homens e dezesseis mulheres entram no programa em busca do “amor verdadeiro” (atenção às aspas, por favor), por uma conexão que se daria não pela atração física, mas pelos papos que eles têm em cabines separadas por um telão no qual fica passando um padrão de imagens de gosto duvidoso que lembra talvez um daqueles antigos fundos de tela de computadores. Ou seja: o casal que está ali no momento não consegue se ver.
Eis de onde vem a premissa do programa: seria o amor cego? Seria possível uma atração real pelo que o outro é, e não pela sua aparência (como se não fossemos a nossa aparência, mas ok, deixemos isso de lado por ora).
Papo vai, papo vem, logo alguns participantes começam a se afeiçoar entre si e passam a ter encontros mais frequentes, sempre sem poderem se ver. O ápice dessa primeira parte do programa é quando alguém é pedido em casamento e, se aceitar, tem a oportunidade de finalmente encontrar pessoalmente o fulano de tal que estava do outro lado do telão.
E foi aí que esta temporada trouxe algo novo, que me fez pensar e me tirou daquele tão esperado estado de puro relaxamento vazio.
Um dos participantes, ao ver a sua prometida pessoalmente, simplesmente não soube lidar com o fato de ela ser uma mulher gorda e desistiu de tentar manter o laço que haviam criado pelas cabines. Só que isso aconteceu de forma bem gráfica: ambos caminharam pela passarela em direção ao outro e o rapaz, visivelmente sem saber o que fazer com a situação, virou as costas e foi embora.
Gostaria que o leitor atentasse para o fato de que essa foi uma cena mostrada em um dos programas de maior audiência da Netflix, num período do ano em que muitos estamos com tempo livre para assistir justamente a este tipo de conteúdo. Ou seja: muita, mas muitíssima gente viu uma mulher gorda ser rejeitada sem dó nem piedade.
O meu ponto não é sobre o ato em si, até porque seria ingênuo dizer que não vivemos em uma sociedade profunda e estruturalmente gordofóbica. Não preciso gastar meu latim aqui para mostrar o quanto os padrões de beleza que impomos a nós mesmos são um dos maiores causadores de adoecimento psíquico.
O que realmente me bateu na hora em que vi a cena foi a seguinte pergunta: será que a Netflix deveria ter mostrado essa cena?
Confesso que sinto um calafrio quando imagino os produtores do show sentados em torno de uma mesa e deliberando que sim, que esta cena deveria estar na edição final do programa.
Por um lado, entendo que não é por algo não ser veiculado que isso deixa de existir. E também acredito que é importante que não tornemos invisíveis as violências cotidianas que afligem os grupos minorizados da cultura. Ou seja: faria sentido se alguém me dissesse que uma cena dessas possa ter um efeito pedagógico.
Mas eu sinceramente não acredito que a escolha por manter esta cena no programa tenha sido um ato nobre ou com objetivo educacional.
Em uma época do ano em que todos os serviços de streaming estão disputando a audiência do espectador, eu suponho que manter esta cena tenha sido pura e simplesmente uma estratégia para garantir o falatório em torno da atração da Netflix. Poucas horas depois da estreia dos episódios, a timeline do Twitter já estava tomada por opiniões a respeito do que havia acontecido, por exemplo.
Dou mais uma volta, complexificando ainda mais a questão: em tempos em que só se torna visível aquilo que gera polêmica, haveria outro espaço possível para visibilizar um tema tão delicado e duro?
Fico bastante em dúvida, e por isso essa coluna é mais um começo de papo com meu leitor do que a afirmação de uma posição tomada.
Tendo a pensar que a exposição pornográfica de uma cena de gordofobia acaba sendo uma segunda violência, assim como ocorre em casos de abuso sexual ou de divulgação de fotos íntimas.
Será que realmente a Netflix não estava apostando na polêmica quando fez a escolha do elenco? Acho ingênuo achar que algo que é estrutural e tão corriqueiro no dia a dia não fosse acontecer também no programa.
Mas estou bastante aberto a escutar as opiniões divergentes ou contraditórias.
A ver os próximos capítulos.