Enquanto eu escrevia este texto para a Sler, a 51ª edição do Festival de Cinema de Gramado ainda acontecia. E a jornada, mais uma vez, chegou apontando para a nossa diversidade com muita emoção, começando pelo documentário “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho, que abriu o evento no sábado, 12 de agosto, fora da competição. Após a exibição, seguiram-se os curtas “Yâmi Yah-Pá”, de Vladimir Seixas e “Deixa”, de Mariana Jaspe, e o longa-metragem “Ângela”, de Hugo Prata, em competição.
Passar pelo tapete vermelho, entrar no Palácio dos Festivais e acompanhar o entusiasmo do público sempre foi e é para mim motivo de muita alegria. Até porque já trabalhei em coberturas do evento, trabalhei como assessora de imprensa e, quando era só uma estudante de jornalismo, curiosa e com pouco dinheiro, ia para Gramado com a minha irmã, ficávamos na casa da mãe de uma amiga, que nos recebia com muito carinho, ou em uma pensão barata, e víamos os filmes pela manhã, bem felizes.
Neste ano de 2023 fui convidada para fazer alguns textos para o catálogo do Festival, o que possibilitou que eu escrevesse “Uma instigante viagem pela criação cinematográfica”, além de “Em cena, a diversidade feminina”. Gramado prestou uma homenagem muito linda para cinco mulheres de fundamental importância para o audiovisual brasileiro. O Troféu Oscarito foi para as atrizes Laura Cardoso e Léa Garcia. E Léa, uma mulher extraordinária, bem posicionada, que abriu caminhos para atrizes e atores negros, despediu-se da vida neste plano no dia em que seria homenageada, 15 de agosto. A emoção tomou conta do país. Para chegar aonde chegou, ela quebrou muitas barreiras, o que fez com dignidade, determinação e delicadeza. Sua ousadia extrapolou os nichos e os papéis tradicionalmente destinados aos negros no campo das artes – televisão, teatro, cinema. Abriu e ampliou espaços para que negras pudessem pisar com segurança nos palcos e sets cinematográficos, mostrar talento e assumir o protagonismo. A presença forte de Léa, sua atuação e sua luta foram fundamentais para uma camada da população sempre colocada à margem. Tive a alegria de escrever sobre ela e sobre Laura Cardoso, outra atriz maravilhosa.
E escrevi também o texto que, para minha surpresa, abre o catálogo e que reproduzo aqui.
Gramado, uma instigante viagem pela criação cinematográfica
Antes de chegar à sala de cinema, um filme precisa ser pensado e produzido, o que coloca em cena diversos elementos e personagens para além das telas. A partir de uma ideia e dos primeiros rabiscos de um roteiro, soma-se a busca de uma equipe, a definição do elenco e dos lugares para as filmagens, as gravações, a montagem, a edição final, os incentivos e patrocínios, o lançamento, os espaços para projeção e o trabalho cotidiano para que a caminhada encontre o público desejado. Não é uma equação fácil porque a jornada, cheia de desdobramentos, envolve questões vitais para a afirmação de culturas, identidades e mercado. E nesta caminhada os festivais têm um papel fundamental.
A trajetória do Festival de Cinema de Gramado é uma prova concreta desta aventura que leva para as telas brasileiras a produção audiovisual de realizadores, atores, técnicos e tantos outros trabalhadores que contribuem para que a magia aconteça. São 51 anos ininterruptos de um evento que, ao colocar em cena a criação cinematográfica e suas tantas nuances, proporciona uma viagem instigante pela arte brasileira. O crítico de cinema, filósofo, psicanalista e economista Enéas de Souza diz que “os filmes pensam o mundo”, consequentemente pensam e descortinam vidas, subjetividades, fantasias, desejos, limites, desespero e embates, do cotidiano mais banal ao mais trágico. Falam de nós, das nossas aldeias, dos nossos sonhos, da complexidade do existir. Instigam e reviram nossas certezas, acolhem e inquietam o nosso estar no mundo.
A fruição de um filme é uma aventura que pode ser vivida inúmeras vezes e sempre proporcionar uma experiência única. Aventura que leva o público a testemunhar turbulências, dores, alegrias, interrogações. Ao longo de cinco décadas, além da importância vital como testemunho da potência criativa do povo brasileiro, o Festival de Gramado é um acontecimento cultural que expressa a história do nosso cinema, alimenta o mercado, a política do audiovisual, a cadeia produtiva e artística nacional, proporciona encontros, trocas e debates. Gera empregos. É arte genuína. É mercado. É estímulo à criação. É soberania.
O cinema é um instrumento fundamental para fortalecer a nossa identidade e a diversidade que nos constitui. Aguça o imaginário popular, o pensamento crítico e o diálogo entre culturas, evidenciando a importância de nos vermos existindo em cada canto, reconhecendo e respeitando as singularidades de um país continental.
Que os próximos 50 anos do Festival de Cinema de Gramado, que se abrem neste agosto de 2023, sejam ainda mais abrangentes e agregadores ao mostrar o Brasil aos brasileiros através da arte.
Foto da Capa: Cleiton Thiele/Agência Pressphoto / Divulgação