A cerimônia de premiação do Grammy 2024 e o Super Bowl, jogo decisivo do futebol americano, bateram recordes de audiência televisiva nos Estados Unidos e mostraram tanto a realidade de divisão e radicalização política se imiscuindo em todos aspectos do cotidiano como o poder da arte para superar essa realidade.
A edição do Grammy 2024 foi a mais vista desde 2020. Uma semana depois, o Super Bowl LVIII se tornou o jogo de futebol americano mais assistido da história. Em ambos os casos, todos assistindo aos eventos ao estilo século XXI: nos mais diferentes tamanhos, de celulares a telões e em canais e em idiomas os mais diversos. O jogo decisivo da NFL, a Liga de Futebol Americana, foi transmitido em espanhol pela Univision, na TV aberta pela CBS, no streaming pela Paramount+ e pelo Bob Esponja e o Patrick na Nickelodeon.
Claro que muitos telespectadores foram atraídos pela cantora Taylor Swift. A artista, que é seguida por multidões, foi a grande vencedora do Grammy em um domingo e no outro apareceu no estádio para torcer por Travis Kelce, que se sagrou campeão jogando pelo Kansas City Chiefs. A pop star apareceu em dezenas de comerciais, reportagens e ainda desceu ao campo para comemorar a vitória com o namorado. A decepção rondou as redes sociais onde o beijo da vitória, no meio de uma multidão, foi rotulado de morno e desajeitado. Mas uma estrela de primeira grandeza é uma estrela de primeira grandeza e o público a assiste nem que seja para falar mal como a multidão de haters que a perseguiu nas últimas semanas.
O romance entre o atleta e uma estrela do pop deu origem a uma curiosa teoria conspiratória, pela qual nada mais seria do que uma bem urdida peça de propaganda política da campanha para a reeleição de John Biden à presidência dos EUA. Aos republicanos, diante do sucesso dos casal, que levantou troféus no Grammy e no Super Bowl, restou a tentativa de desacreditar o romance. Tudo armação, dizem eles, tantos os beijos do casal como o bicampeonato do Kansas City Chiefs, acusando manipulação dos resultados. É a vida polarizada como ela é, políticos tentando galvanizar seu público e gerando divisões em série.
O Grammy, que o antecedeu, teve seu momento de superar divisões e polarizações afetivas como só a arte é capaz, graças à apresentação da cantora Tracy Chapman com o astro country Luke Combs. Aliás, recomendo muito que assistam a apresentação no link aqui.
Tracy Chapman voltou à premiação do Grammy após uma ausência de 35 anos. A cantora havia interpretado a música “Fast Car” em 1989 e se retirou dos palcos em 2009. A composição se tornou um sucesso na interpretação do cantor country Luke Combs que a apresentou a uma nova geração e aos fãs de outro gênero musical. Recentemente, David Brooks, colunista do New York Times, escreveu que “nos aproximamos da grande arte em uma postura de humildade e reverência”. Ele não poderia ter descrito melhor a forma como Luke cantou “Fast Car” e se apresentou ao lado de Tracy.
No palco, o contraste entre duas gerações, entre dois países diferentes: norte e sul, uma mulher negra e um homem branco. Luke, nascido em 1990 e que ouvia o pai tocar aquela música quando criança, em respeitosa reverência à Chapman que, nas palavras da crítica musical Lindsay Zoladz, surgiu com a alegria irradiando de seu rosto.” Seu sorriso satisfeito. O tom inabalável e a rica firmeza de sua voz.” A dupla, diz ela, deu aos EUA um raro presente: “harmonia”.
Harmonia, uma palavra musical, mas que diz muito do que nos falta em um mundo caótico e polarizado, é tudo. Uma palavra muito mais adequada para se falar em cultura do que as “guerras culturais” que tanto escutamos nos últimos anos. A resposta do público foi imediata e inundou as redes sociais, como escreveu Peter Wehner, em seu artigo “A Rare Moment Americans Could All Share”, pessoas indo para as redes sociais dizer que estavam chorando. E o milagre aconteceu: as bolhas de direita e de esquerda na Internet reagindo da mesma forma ao mesmo fato.
A música tem o poder de mexer conosco, de elevar e enobrecer as nossas sensibilidades, de nos levar a lugares que outras coisas simplesmente não conseguem. O ritmo e a harmonia chegam ao mais íntimo da alma, escreveu ele. E isso, ainda nas palavras de Wehner, graças “a uma canção desesperada, bela e empática, sobre pobreza e cuidado com os familiares que sofrem, sobre relacionamentos fracassados e sonhos desfeitos, sobre o desejo de fugir e o desejo de dignidade.”
A canção de Chapman traz desejos simples que beiram a universalidade: ser cuidado por alguém, ter dignidade e ter alguém com quem compartilhar nossos fracassos e sonhos. E, como diz a música, ter um braço em volta dos ombros e sentir que pertence e que se pode ser alguém.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube