Retorno a outro 14 de fevereiro, 1990. Dias antes, completara trinta anos, estávamos grávidos de nossa primogênita, o futuro algo incerto. A paternidade em gestação, no entanto, sabia – mais do que dúvidas – a vigor e generosa esperança.
Naquele dia, a sonda espacial Voyager 1 recebeu um comando especial da sua base. Fotografar os planetas que visitara em sua trajetória; fora lançada em 5 de setembro de 1977. A NASA – Agência Espacial Norte-americana – criou um mosaico, compilado de 60 fotografias, um “retrato de família” do sistema solar.
Uma daquelas imagens provoca especial consideração. À distância de 6,4 bilhões de quilômetros, a Terra, no granulado do quadro, não é mais do que um ponto.
Trinta e cinco anos depois, nossa neta responde com um sorriso solar às minhas caretas. Apoio seus pés em minhas pernas, ela firma-se e parece ensaiar um impulso. Vai caminhar cedo.
O cientista Carl Edward Sagan (1934-1996), astrônomo, astrofísico, escritor e ativista norte-americano, é autor de vários livros de ciência e ficção. Em 1994, publicou “Pálido Ponto Azul”. Nele, o autor faz uma profunda e atemporal reflexão a partir daquela foto.
A memória impõe que a evoque, enquanto acalento minha neta.
“Olhem de novo para esse ponto” – enfatiza Sagan – “Isso é a nossa casa, isso somos nós”. Ele prossegue: “Nessa casa, todos que amamos, conhecemos, todos de quem já ouvimos falar, mas também todo o ser humano que já existiu, viveu a sua vida. O agregado de nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas. Cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização. Reis e plebeus. Cada jovem casal apaixonado, cada mãe e pai, cada criança esperançosa. Inventores e exploradores. Cada educador e político corrupto. Cada superestrela, cada líder supremo. Cada santo e pecador da história de nossa espécie ali (aqui) viveu, em um grão de poeira suspenso num raio de sol”.
Na sala, a televisão ligada, som propositalmente baixo. O noticiário despeja profusão de medidas, decretos, imposições. Conflitos, provocações, fome de mais guerras. Os novos donos do mundo regurgitam fel em golfadas. Alguém mais sente náusea ao apanhar o ovo aninhado, colocá-lo sob lúcido foco e se deparar com a serpente que ali se desenvolve?
Apelo de novo a Carl Sagan. Ele nos lembra que “a Terra é um cenário muito pequeno em uma imensa arena cósmica”. Provoca-nos a pensar “nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que em sua glória e triunfo, eles pudessem se tornar os mestres momentâneos de uma fração desse ponto. Infindáveis crueldades infligidas pelos habitantes de um canto deste pixel aos quase indistinguíveis habitantes de algum outro canto. Quão frequentes as suas incompreensões, quão ávidos de se matarem e quão fervorosamente eles se odeiam”.
Aquela imagem nos mostra a real dimensão do nosso planeta. Único e solitário, na imensa escuridão. Na vastidão cósmica, nada há que possa nos salvar de nós mesmos. Como afirma Sagan, “a ilusão que temos uma posição privilegiada no Universo é desafiada pelo pálido ponto de luz”.
Teresa sorri para o avô. Ela adormece em meu colo.
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Foto da Capa: “Pálido Ponto Azul” (NASA, 1990)