Se no passado o couro cru fez parte da formação do gaúcho, faz parte integralmente da nossa história hoje e para sempre. O aprendizado, a produção gerada com esta matéria-prima e a herança afetiva que ficou são provas da presença de povos originários nas nossas matas nativas e dos que aqui chegaram para ficar e aprenderam com o entrelaçamento de culturas. Foi neste ambiente diverso, em meio à natureza exuberante, que os colonizadores construíram suas vidas e assimilaram saberes e fazeres ancestrais valiosos, transmitidos de geração para geração. O resgate de uma época marcada pelo ofício campeiro dedicado ao trabalho com o couro cru, sem o uso de produtos químicos ou vegetais, é de fundamental importância para todos nós. Guasqueiro é o artesão do sul do Brasil que usa o couro cru como principal matéria-prima nas suas criações.
Para termos noção de como viviam as pessoas que moravam no campo numa época em que os recursos eram escassos precisamos de quem conte essa história. Como foram criadas as peças para montaria e vestimentas de quem enfrentava longas viagens no lombo de cavalos? Que utensílios precisavam levar nas andanças para se proteger das intempéries e preparar a própria comida e dos animais? Esta é a herança preciosa que Rodrigo Lobato Schlee e Fernanda Valente de Souza registram com muita competência, depois de inúmeras experiências, prática e uma longa pesquisa, no livro “Guasqueiro: A Arte Gaúcha do Couro no Apero Crioulo”, que tive o prazer de revisar. Foi um desafio que me ensinou muito e só tenho a agradecer.
Lançado no dia 24 de maio no Foyer do Multipalco do Theatro São Pedro, em Porto Alegre, a publicação será lançada também em Pelotas, terra dos autores, em 1º de junho, e no dia 15 de junho em Gramado, onde moram. Os lançamentos são acompanhados por uma exposição instigante com parte do acervo de mais de mil objetos recolhidos, preservados e confeccionados por Fernanda e Rodrigo, um legado inestimável.
Desde guri, Rodrigo ficava “hipnotizado por aquela arte de transformar um rústico couro cru em trançados perfeitos”.
A curiosidade pelo ofício vem das vivências familiares no meio rural, do encantamento pelo mundo campeiro, pelos domadores, pela lida com o gado e os cavalos, as vestimentas, as viagens, as investigações antropológicas e uma extensa garimpagem em literaturas do Rio Grande do Sul e dos países vizinhos, Uruguai e Argentina. A procura por antigos guasqueiros em rincões do pampa, lá onde se configurou o gaúcho e seu jeito de trabalhar o couro após a chegada do gado por aquelas bandas, também motivou o casal. Ainda guri, “hipnotizado por aquela arte de transformar um rústico couro cru em trançados perfeitos”, Rodrigo observava o trabalho por horas, com uns pedaços de tentos catados pelo chão, querendo aprender.
“Não me afastei enquanto não aprendi a trança de quatro tentos, que se usa para trançar laços”.
Depois de adulto, já formado em Direito pela Universidade Católica de Pelotas, e vivendo com Fernanda, formada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pelotas, no bairro Laranjal, Rodrigo conta que eles mantinham uma exposição permanente de aperos crioulos, pilchas e objetos de usos e costumes dos gaúchos, além de uma oficina de artesanias gaúchas, que tinha como principal atividade trabalhos de guasqueria. Recebiam visitas da população local, de outras regiões do estado, do país e delegações estrangeiras e divulgavam a cultura regional, com o apoio da Prefeitura e da Universidade Federal de Pelotas.
O couro sempre foi tratado pelo casal como material nobre e de destaque.
É interessante sinalizar que destas atividades saíram os principais aperos usados na minissérie “A Casa das Sete Mulheres”, veiculada pela TV Globo no início de 2003. Em seguida vieram produções cinematográficas, como o longa-metragem “Concerto Campestre” (2004), dirigido por Henrique de Freitas Lima e “Contos Gauchescos” (2012), cinco episódios para os quais Rodrigo e Fernanda forneceram o acervo, além de trabalhar na produção de arte e dos animais.
Uma paixão que se transformou em patrimônio cultural material e imaterial inestimável. Ao abordar as primeiras manifestações artísticas do sul do Brasil, o livro dá voz às peculiaridades da história do Rio Grande do Sul a partir de elementos abstratos, como hábitos e rituais, e elementos concretos como os objetos e as construções, registros que ficam para sempre.
O projeto do livro e da exposição tem assinatura da Ato Produção Cultural. O patrocínio é da empresa Baldo S/A, com financiamento da Lei Rouanet/Ministério da Cultura. O apoio para esta iniciativa ousada possibilitou o estudo aprofundado de um patrimônio cultural considerado uma das primeiras manifestações artísticas do sul do Brasil e dos países vizinhos.