Dia 19 de maio de 2018 era um sábado chuvosa aqui abaixo dos trópicos e eu estava em um momento muito difícil: minha irmã Janaina estava hospitalizada em cuidados paliativos em razão de um câncer no pulmão. Me lembro bem que fiquei na frente da TV vendo o casamento de Meghan e Harry, como um conto de fadas de ver uma princesa negra entrando na realeza.
Janaina se estivesse consciente ia vibrar, pois viveu na Inglaterra, estudou lá e referenciou sua história pessoal por este momento de sua vida. Foi através de minha irmã que soube da história de uma senhora negra que trabalhava com ela no café em Londres e todo mês enviava valores para seus filhos e netos que moravam em um país da comunidade britânica em África. Quando minha irmã me contou isto, eu sempre pensava nesta senhora, seu trabalho e vida isolada enviando dinheiro para seus parentes. Sempre me apertou o coração.
Corta para 2022: minha irmã faleceu no dia seguinte ao casamento de Meghan. E um turbilhão se passou nestes últimos 4 anos. O casamento de conto de fadas revelou o racismo da realeza, da imprensa e dos britânicos brancos, o mundo adoeceu, uma pandemia veio, George Floyd foi assassinado, o conservadorismo se ampliou, um príncipe renunciou à realeza por amor e a rainha, que por mais tempo reinou na linhagem milenar inglesa, morreu.
E eu em um sábado quente de dezembro desavisada do alvoroço em torno da série lançada em 08 de dezembro pelo Netflix me surpreendi. Harry e Meghan lançaram uma série-documentário abrindo a caixa de pandora da realeza. Tudo é passado a limpo ali: a vida em exposição pós Lady Di de Harry, o amadurecimento de Harry na sua condição de príncipe sem liberdade pessoal e fama de encrenqueiro, a vida de Meghan como uma “mestiça” nos EUA, o uso do termo birracial, a relação e consciência racial a partir da sua mãe – mulher negra norte americana, o colorismo e o impacto em Meghan, e todo o desdobramento de impacto racial da relação dos dois na monarquia britânica.
A série é muito bem construída, os depoimentos de historiadores, de especialistas em realeza, em funcionários da imprensa e das relações públicas, a aula que Harry dá sobre sua desconstrução do racismo, a partir de seus vieses inconscientes, e o depoimento de Meghan de sua descoberta de consciência racial.
Não é uma série boba, é uma série que está disposta a sentar e ter a conversa difícil sobre o colonialismo e seus impactos até hoje. É uma série que traz à tona de forma didática o que é colonialismo e como ele se perpetua a partir da manutenção da realeza como simbolismo de uma família “que tem um direito dado por Deus de governar e dominar outros povos”.
Vi a crítica de um colunista da Folha de São Paulo dizendo que a série deve agradar quem tem um deserto na cabeça para aguentar as divagações deles. Divagações?
Coragem seria melhor termo… de tocar além das pílulas pessoais em temas como preconceito racial, colorismo, birracialidade, histórico colonial do império britânico e mesmo que não houvesse nada disto, a crítica à imprensa de tabloides mundiais que impacta e alimenta uma rede de exposed e o senso de cuidar da vida alheia sem limites éticos.
A série é uma visão íntima dos duques de Sussex, Príncipe Harry e Meghan Markle, de como a vida tem sido para eles desde o início de seu romance e o quanto foi difícil para Markle fazer parte da família real como uma mulher birracial.
Meghan cita no documentário: “Naquela época, eu não estava pensando em como a raça desempenhava um papel nisso tudo. Eu realmente não pensei sobre isso.”
Ela continuou: “É muito diferente ser uma minoria, mas não ser tratada como uma minoria logo de cara. Eu diria agora que as pessoas estão muito cientes da minha raça porque fizeram disso um problema quando fui para o Reino Unido. Mas, antes disso, a maioria das pessoas não me tratava como uma ‘mulher negra’. Então, essa conversa não aconteceu para mim.”, explicou, relembrando as primeiras reações da imprensa local quando foi anunciado que ela e Harry estavam namorando.
Para mim este é o ponto de força desta série e que pode ajudar a ampliar a tomada de consciência antirracista. A série não me prendeu pela história de amor, e sim pelo subtexto que inclusive é o motivo de fúria do irmão de Harry, Andrews dizendo: nossa família não é racista.
Veja a série…