A empresa química Esperança1 fica localizada na periferia de uma cidade empobrecida da área metropolitana de uma grande capital. Um lugar esquecido do mundo. O que eles acham bom, pois fabricam uma série de produtos tóxicos cujos resíduos são jogados no ar e num córrego próximo sem qualquer tratamento. É um negócio lucrativo, e não faltam clientes. Mas, depois de participar de um encontro de empresas químicas, o diretor geral, que também é o proprietário, voltou inquieto.
– Temos que fazer algo para mostrar que trabalhamos com sustentabilidade! Tá todo mundo fazendo isso!
– Mas diretor – respondeu um dos engenheiros – ninguém vem aqui ver nossos processos, nem a fiscalização, já que o pessoal do bairro não deixa nem eles entrarem.
– Por falar nisso – acrescentou o diretor financeiro – eles estão pedindo um aumento do pagamento pela proteção.
O diretor geral respondeu:
– Pode dar. Porque eles fazem um bom trabalho mantendo os fiscais longe. E ninguém vem aqui nos roubar. Dá, mas reclama, senão eles ficam muito baseados.
E depois, se voltou para o engenheiro:
– Você não entendeu. Temos que mostrar que estamos fazendo alguma coisa. Pois às vezes vem clientes aqui, e eu quero causar uma boa impressão neles e na comunidade.
O químico presente sugeriu:
– Já sei, podemos construir um pequeno prédio lá no fundo e colocar uma placa: Estação de Tratamento de Efluentes. Eu até recomendo que a gente jogue um pouco de soda cáustica no resíduo. A soda clareia a água e vai dar mesmo a impressão de que estamos limpando a coisa.
O diretor geral ficou entusiasmado:
– Excelente ideia! Vamos fazer isso! Assim a gente impressiona os clientes, e o povo do bairro vai gostar de ver a água mais clara.
Essa, naturalmente, é uma história de ficção. Dificilmente uma empresa seria assim tão desonesta (acho eu…). Mas o fato é que a pressão para que as empresas demonstrem compromissos com a sustentabilidade faz com que seja tentador para muitas “dourar a pílula”, dizendo que fazem muito mais do que realmente fazem.
O termo para isso é hipocrisia verde ou, em inglês, greenwashing, e pode ser aplicado não só a empresas, mas também a pessoas – políticos e influenciadores, por exemplo – e até mesmo a países.
Vamos começar então falando sobre países. E primeiramente sobre um país que eu conheço e admiro: a Noruega, cuja história nos mostra como esse assunto pode ser complicado, e sensível.
A Noruega, como todos os países nórdicos, é um exemplo em termos de organização e civilidade. Tem alto padrão de vida, saúde, educação, igualdade e tolerância. Seus habitantes se sentem protegidos por um sistema social justo e igualitário.
Porém, ao longo da maior parte da história a Noruega foi vista como a “prima pobre” da poderosa Suécia, um país com uma população muito maior que, graças à industrialização precoce, se tornou muito mais rico e desenvolvido já no início do século XX do que sua vizinha Noruega.
Até que, nos anos 1970, tudo mudou com a descoberta do petróleo no Mar do Norte e no Mar da Noruega. O país se tornou um grande exportador e por causa da riqueza trazida pelo petróleo é considerado hoje o país mais rico do mundo (por conta de sua reserva financeira per capita ser maior do que a de qualquer outro país).
Os noruegueses adoram a vida ao ar livre. No verão, as florestas, as trilhas nas montanhas ou a belíssima paisagem dos fiordes se enchem de pessoas caminhando, correndo, acampando. O inverno é longo e muito frio, mas eles aproveitam para esquiar e patinar. Por isso, preservam seu país com muito cuidado.
E estão preocupados com o planeta. O país é muito limpo, em todos os aspectos de poluição do ar, das terras e das águas, e trata e recicla o lixo e outros dejetos com muito cuidado. A Noruega está desenvolvendo um agressivo esforço de descarbonização, que inclui a geração limpa de energia, a eletrificação da frota de veículos, aviação e navegação elétrica, com o objetivo de alcançar a “neutralidade climática” e reduzir suas emissões de carbono em 40% até 2030.
É um dos países que mais contribui no mundo para a preservação das florestas, tendo doado mais de 1,1 bilhão de dólares ao Fundo Amazônia, do Brasil, desde 2009, patrocinando ações que buscam a preservação das florestas.
Por tudo isso, a Noruega é considerada um modelo a ser seguido em termos de preservação do meio ambiente.
Mas não está faltando alguma coisa? A Noruega exporta petróleo! Atualmente, suas exportações estão em 1,5 milhão de barris por dia. Todo o óleo e gás exportados pela Noruega, ao serem utilizados em outros países, geram emissões de gases de efeito estufa, com consequências para todo planeta, Noruega inclusive.
Mas os noruegueses, convenientemente, “esquecem” disso quando fazem as contas para se tornar carbono zero.
Em 2018, um tribunal do país, ao julgar uma ação contra a exploração de petróleo no Ártico (que foi autorizada) afirmou: “as emissões de CO2 emitidas em outros países pelo petróleo exportado pela Noruega são irrelevantes”. A ação foi perpetrada por grupos ambientalistas no contexto do Artigo 112 da Constituição norueguesa, que estabelece que “o governo não pode tomar decisões que violem o direito a um meio ambiente saudável para as atuais e futuras gerações”. Mas os juízes decidiram que o que os outros países fazem com o petróleo que eles exportam não lhes diz respeito. Se isso não é hipocrisia…
E a Noruega não está sozinha. A Arábia Saudita, dona das maiores jazidas de petróleo do mundo que, provavelmente, será o lugar de onde sairão as últimas gotas a serem consumidas pelos humanos, também se apresenta como um “campeão da sustentabilidade”, investindo mais de 200 bilhões de dólares em energias renováveis (principalmente solar) e se comprometendo a ter pelo menos 50% de sua energia oriunda de fontes renováveis em 2030.
Qatar, Emirados Árabes Unidos, outros grandes produtores de petróleo, também apresentam programas ambiciosos de geração renovável e eletrificação de frotas de veículos. A China, que é o maior emissor de carbono do mundo, com emissões anuais da ordem de 12 bilhões de toneladas, pretende se tornar o maior fornecedor mundial de painéis solares, baterias e veículos elétricos. Nas suas cidades mais visitadas, exibem gigantescos projetos de geração de energia renovável. Mas em seus grotões, continua construindo termelétricas movidas a carvão, o maior poluidor entre todos os combustíveis fósseis.
E as empresas? Uma forma comum é apresentar programas de sustentabilidade que são simplesmente enganosos.
Recentemente, ficou famoso o caso da Volkswagen, que teve prejuízos de 35 bilhões de dólares depois que a Agência Ambiental Americana (EPA na sigla em inglês) a denunciou por utilizar um software que registrava uma emissão de gases de efeito estufa menor que a real. Verificou-se que cerca de 500 mil carros nos Estados Unidos e 10 milhões no mundo tiveram seu software alterado. O caso ficou conhecido como “Dieselgate”.
A Shell que, como a maior parte das outras empresas de petróleo tem se reposicionado como empresa de energia (ou seja, não só de petróleo), é frequentemente acusada de praticar greenwashing. Seguidamente faz propagandas sobre transição energética e “um futuro limpo”, chegando até mesmo em investir em startups como a Onward, que promete “avançar a transição energética conectando milhares de inovadores de todo o mundo para enfrentar os difíceis desafios da transição energética e das mudanças climáticas”.
No entanto, a análise do site da Onward revelou que a maior parte de suas ofertas de emprego e de seus projetos estava na verdade voltada para a área de óleo e gás. O porta-voz da Shell explicou: “Essa empresa foi estabelecida para tornar os processos de produção de óleo e gás mais eficientes, reduzindo seu impacto ambiental”. Mas não era para ser uma empresa de transição energética?
A Exxon e a Saudi Aramco (a companhia de petróleo da Arábia Saudita) anunciaram investimentos bilionários em “energia limpa”, a maior parte voltada para a captura de carbono, que é como as empresas pretendem continuar produzindo petróleo enquanto nos cobram para retirar carbono da atmosfera. Em janeiro deste ano, representantes das empresas Shell, Chevron, SoCal Gas, BP e Saudi Aramco estiveram presentes numa conferência de empresas de energia limpa em San Diego, na Califórnia. Puro greenwashing...
Mas não é só no ramo do petróleo. Empresas como Toyota, Wall Mart, H&M, Decathlon, Goldman Sachs e muitas outras foram multadas recentemente por conta de enganarem o público ou os reguladores quanto à sustentabilidade de seus produtos.
No Brasil, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) fez uma pesquisa em cinco grandes cadeias de supermercados e concluiu que pelo menos cinco práticas de greenwashing são comuns. São elas:
- Menção sem provas: empresas citam programas e produtos que preservam o meio ambiente, mas não explicam como;
- Troca oculta: apontam um aspecto em seu produto não prejudica o meio ambiente, mas ignoram aqueles em que é prejudicial;
- Imprecisão na comunicação: afirmações como, por exemplo, que o produto “é todo natural”, como se o fato de ocorrer na natureza não pudesse torná-lo tóxico (o mercúrio, o arsênio e outras metais tóxicos ocorrem na natureza);
- Informação irrelevante: algumas empresas ainda anunciam que seus produtos são “livres de CFC”, o que é irrelevante, pois o CFC é proibido!
- Segmentação de produtos: a empresa cria uma linha “ecológica”, mais limpa, para atrair os consumidores mais conscientes, enquanto a maioria de seus produtos (e do seu lucro) provém de produtos danosos ao ambiente.
Há muito mais, naturalmente. Patrocínio de programas de sustentabilidade que custam um valor ínfimo do seu lucro, mas que ocupam a maior parte de suas propagandas. Mentira pura e simples. E assim por diante. Ainda que haja empresas sérias, realmente comprometidas com a sustentabilidade, elas são, infelizmente, a minoria.
E nós, pessoas? Autoridades, políticos, cidadãos comuns? Aqui a hipocrisia impera. Estamos ou fingindo que nos preocupamos quando nos é conveniente (há os que não fingem porque de fato não se preocupam!) ou fazendo muito pouco. Eu já apresentei em coluna anterior algumas sugestões sobre o que você pode fazer como indivíduo. Confira aqui.
Mas é um assunto importante ao qual voltarei em breve. Por enquanto, quer fazer algo de impacto agora mesmo? Reduza ou elimine o consumo de carne vermelha e pare de usar plásticos descartáveis. Você não faz ideia do efeito positivo que essas ações simples teriam para o planeta.
Notas:
1Nome fictício inventado para esta coluna.
2O livro “Planeta Hostil”, foi publicado pela Editora Matrix, de São Paulo. Pode ser adquirido no seu site: matrixeditora.com.br e na Amazon.
Observação final: Para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
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Foto da Capa: Freepik