Essa é uma frase que surge vez ou outra nos consultórios de psicologia e psicanálise. O que faz alguém – que tem 24 horas por dia, 7 dias por semana, e por vezes vai a um consultório em apenas uma delas – sentir que não tem nada para dizer? São vidas monótonas com rotinas sempre iguais? Certamente não. Mesmo com uma rotina aparentemente igual, nossa mente e nosso olhar sobre a vida e os acontecimentos não param – ou não deveriam parar – de registrar novos acontecimentos, percepções, pensamentos novos ou desconfortáveis. Mas a habilidade de disfarçar ou, em vocabulário mais técnico, reprimir tais novidades internas por vezes supera a necessidade disso tudo ganhar palavra. Alia-se a isso uma vida que nos rouba cada vez mais a percepção interna e a capacidade de comunicação conosco mesmos e com os outros e a equação parece pronta.
Eu sempre tenho mil coisas para dizer, para trocar, para jogar para um outro alguém que possa vir comigo e embarcar no pensamento ou na nova ideia que surja. Gosto de quem gosta de viajar no pensamento. Vitor Ramil já cantou “quando fico assim olhando, como se estivesse ausente, tô só viajando, não penses que estou me perdendo”. Viajar no pensamento e encontrar uma boa companhia para a jornada me parece uma das essências da vida. Mas para que isso aconteça com constância e parceria, é preciso ter a capacidade de se envolver nas relações, meter-se com alguém até as entranhas no sentido daquela ser a pessoa que conhece suas maiores vulnerabilidades e fragilidades, mas que também sabe de suas maiores forças e grandezas. Isso requer abertura, coragem e um tanto de ousadia, se não estou errada. Não é uma busca que se estanca, assim como também não é uma busca que se resuma a parcerias amorosas conjugais. Amizades também têm a grande oportunidade de oferecer esse tipo de companhia.
Há algum tempo, em uma sessão analítica, trabalhando justamente esse tema, acabei fazendo uma correlação entre as palavras envolver e conviver. Como acontece em muitas das sessões, digo palavras aparentemente sem um planejamento, mas depois que as ouço saindo da minha boca, percebo uma correlação não apenas na semântica, mas também na sintaxe dessas “escolhas”. A sessão acabou, a analisanda saiu da sala e eu sentei na minha mesa com uma folha diante de mim e escrevi essas duas palavras em caixa alta: ENVOLVER / CONVIVER.
Envolver-se com alguém pressupõe muito mais entrega e compromisso do que apenas conviver, mesmo que a convivência por si só já não seja tarefa fácil. Envolver é se meter, é dividir e carregar segredos compartilhados que detêm uma responsabilidade grande. Sem essa responsabilidade, que pode parecer um fardo, mas não deveria, não há narrativa profunda, não há emoção ou expectativa alguma. Envolver-se é torcer pelo outro, vibrar pelo outro, querer de fato saber sobre o outro, sofrer com o outro, como se a dor fosse nossa. Conviver envolve muito menos dessas questões. Eu vivo com, mas a questão não me diz respeito, posso virar as costas na primeira dificuldade ou até mesmo na primeira conquista do outro que me gere inveja ou frustração quanto à minha própria vida.
Viver com não é o mesmo que volver em, pensando no sufixo volver como a palavra em espanhol para voltar. Envolver é saber voltar ao outro, voltar-se ao outro como me volto a mim ou até mesmo para conseguir voltar a mim através do outro quando eu me sentir perdida. Relacionar-se é um dos maiores desafios contemporâneos. Conviver fica até fácil quando se pensa em envolvimento e compromisso, que não precisa e nem deveria ser uma obrigação, que fique claro. Mas quem não precisa de um “partner in crime”, expressão que eu acho tão perfeita para descrever o que entendo ser uma cumplicidade singular entre uma dupla, seja de amantes ou de amigos? E que de preferência possam alcançar o auge de uma dupla que é de fato ser as duas coisas: amigos amantes ou amantes amigos. Isso deveria ser mais pleonasmo do que de fato é.
Sempre há algo a ser dito. Em sessões de análise, em conversas de bar, em conversas na cama. A palavra ainda há de nos salvar da total selvageria do desencontro. Essa palavra que não vem do dicionário, mas de um dicionário emocional e afetivo que se aprende, que se alfabetiza a quem tiver coragem e capacidade de ser honesto consigo mesmo e com a vida.
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Foto da Capa: Gerada por IA