Fiquei surpresa e muito feliz ao receber a notícia de que Sergio Faraco aceitou ser o patrono da próxima Feira do Livro de Porto Alegre. Surpresa porque ele recusara várias vezes, pois discordava do método de eleição adotado em 2000. Mas a Câmara Rio-Grandense do Livro voltou ao modelo tradicional de homenagem e Faraco julgou que, agora, então, deveria aceitar. E muito feliz porque assim estamos todos nós, como expressou perfeitamente o psiquiatra e psicanalista Abrão Slavutzky: “Nosso entusiasmo com a escolha do Faraco está sendo a nossa maior vitória. Vitória não só cultural, mas em um certo nível é uma vitória espiritual.”
A feira acontecerá de 01 a 20 de novembro e se diz que o patrono deve comparecer na praça todos os dias. Sergio Faraco já comunicou que vai tentar superar suas limitações e, “de algum modo – conquanto esse modo venha a ser modesto –, contribuir para que a feira, a par de difundir o hábito da leitura, possa abrandar as perdas que tiveram editores e livreiros em nosso trágico primeiro semestre”. Acho que uma exposição diária seria demasiada para ele e, afinal, o que importa é a qualidade da presença e não a quantidade. Digo isso porque conheço bem o espírito do nosso maior contista brasileiro quanto à exposição pública. Fui sua agente literária de 2008 a 2013.
Sergio Faraco é um homem reservado e sereno, afeito à vida familiar, ao silêncio, que cultiva em sua casa no topo de uma rua em Ipanema, na Zona Sul. Ali, ele se dedica a serviços gerais – tem até uma conta permanente na ferragem do bairro –, ao corte da grama e cuidados, como, por exemplo, com algum passarinho caído do ninho. Vive os dias em paz e harmonia com o que habita o seu interior. Lembro de um momento simbólico, em que ele participou de um sarau literário no bar Ocidente, com Luís Augusto Fischer, Katia Suman e Cláudio Moreno (foto de capa), em que uma ouvinte o cobrou, meio ríspida, por este seu perfil, ao que Faraco respondeu que a inspiração não é uma torneira que você abre e fecha ao bel-prazer, que a escrita exige recolhimento, reflexão, um deixar fluir as emoções para que se consiga elaborá-las até o ponto de se tornarem um conto.
Nos seis anos que trabalhamos juntos, Sergio Faraco aceitou uma série de convites de eventos, se submetendo a uma exposição que não lhe é natural. Acho que isso acabou contribuindo para o seu cansaço e a necessidade de voltar, totalmente, ao seu interior. Em abril de 2013, ele decidiu parar de escrever e suspender toda e qualquer atividade literária por período indeterminado. Mesmo que não descartasse a possibilidade de voltar a escrever, de momento estava decidido a colocar de lado a caneta – ele começa a escrever sempre à mão. Eu tive a sensação de que ele queria se afastar dos ruídos da “estrada” lá abaixo da sua sossegada rua, dessa vida mundana que levamos. Queria se afastar também do mundo editorial, mesmo que temporariamente. Pesava ainda na sua decisão um certo desencanto com o mundo contemporâneo, essa realidade áspera e turbulenta à qual a maioria dos mortais acaba se adaptando, mas não uma alma como a do Faraco.
Ficou cerca de três anos bastante recluso e, então, acabou voltando ao convívio literário, mas ao seu próprio modo, mantendo a privacidade. Criou uma página no Facebook, em 2016, e passou a publicar capas dos seus livros, fotos de sessões de autógrafos, de cenas familiares e dicas de livros de terceiros. Depois, passou a presentear os amigos com alguns de seus contos, sempre com centenas de likes e muitos comentários, que responde um a um, com uma generosidade e paciência singulares na arena das redes sociais. Para a nossa sorte, que amamos os seus contos e outros textos, voltou também à escrita.
Recorro ao crítico literário José Onofre, que era considerado por Paulo Francis o melhor do Brasil, para contemplar o texto de Faraco: “A literatura do Rio Grande tem ramificações e tendências diversas, sem vínculos com a tradição mitológica da região. Essa vai aparecer no centro da obra dos romancistas Luis Antonio de Assis Brasil e Tabajara Ruas, e do contista Sergio Faraco. Os três têm em comum a geografia, as veredas são diferentes (…). Sergio Faraco dominou de tal forma a arte de fazer um conto que fica difícil enumerar suas virtudes. O melhor é dizer logo que se trata de um virtuose. Nele não se encontram nem os poderosos de Assis Brasil, nem os guerreiros de Tabajara Ruas. São os gaúchos anônimos, peões, contrabandistas, matadores, cujas histórias ele mistura com histórias tiradas de sua memória de infância. Mas o que o define é, na frase da crítica Valesca de Assis, ser o escritor ‘que melhor consegue desvelar a ternura subjacente à pele do homem rio-grandense’ (…)”. (Revista Bravo. São Paulo, 1998). Para mergulhar fundo na obra de Faraco, temos o extraordinário ensaio do crítico de arte Jacob Klintowitz, O humanista no limiar, no sexto fascículo da série digital Escritores Gaúchos, do Instituto Estadual do Livro. Neste fascículo há também textos de Léa Masina, Dilan Camargo e Sergius Gonzaga, mais uma entrevista, fotos e trechos de contos do autor.
Será uma alegria ver o Faraco circulando pela Feira do Livro como patrono. E teremos também um regalo, com o lançamento de seu novo livro, pela L&PM, Digno é o cordeiro, memória de um ano sombrio, uma aguardada continuação de Lágrimas na chuva, uma aventura na URSS. Saberemos o que aconteceu na sua volta ao Brasil, em 1965, depois da terrível e também linda experiência de dois anos na Rússia soviética. Até lá, vamos aguçando a expectativa, relendo sua belíssima obra, que tem a capacidade de nos emocionar e fazer acreditar no humano.
Foto da Capa: Acervo da Autora.
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