Fui informado de que agora nós aqui na Sler temos um perfil no TikTok (SlerOficial). Infelizmente, não acompanharei nossas métricas e conquistas em mais este território digital já sobejamente desbravado porque o TikTok é meio que a última fronteira da minha sanidade pessoal nesse grande saldão da economia da atenção, no qual o produto somos nós mesmos. Confesso que a esta altura da vida abrir um perfil no TikTok para mim seria como aquele meme do Steve Buscemi (foto da capa) em uma cena da série 30Rock, na qual ele interpretou um detetive particular que conta a dois dos personagens recorrentes da série, vividos por Alec Baldwin e Tracy Morgan, que já foi de uma força-tarefa de “policiais de aparência muito jovem” usados para operações infiltradas em escolas de ensino médio (uma sátira aguda à premissa absurda de Anjos da Lei, o programa de TV que tornou Johnny Depp famoso – e não à toa o tom satírico seria também adotado pela refilmagem que já estava em produção naqueles anos). Um flashback mostra Buscemi, com uns 50 anos na época do episódio (e aparentando uns 70), chegando na escola com um moletom vermelho, boné virado pra trás, skate jogado por sobre o ombro e saudando os imberbes estudantes com um “How do you do, fellow kids?”, que em poderia ser traduzido como “Como vão vocês, meus jovens camaradinhas?”
Com o milagre digital da proliferação dos memes, os meros quatro segundos dessa cena se tornaram onipresentes como imagem GIF para satirizar gente adulta querendo fazer de conta que é mais jovem do que é, um fenômeno tão onipresente na cultura contemporânea quanto os próprios memes (e que, penso agora, seria o equivalente na “cultura dos memes” de muitos dos romances de Jonathan Franzen, mas deixo essa conversa pra mais tarde). Seria esse o meu exato desconforto em criar eu próprio uma conta no TikTok. Mas, claro, tendo as redes sociais contemporâneas, especialmente as mais famosas, se transformado em uma espécie de depósito de lixo tóxico, mesmo quem não está lá dentro cavando nas pilhas de detritos radiativos acaba sendo um pouco envenenado pelas emanações atômicas se ficar muito perto, e é assim que eu avalio meus contatos infrequentes com a plataforma.
Para começo de conversa, o fato de que o TikTok já mesmo antes da pandemia era a “rede social do momento”, amealhando um número absurdo de seguidores, fez com que as outras redes nas quais eu relutantemente ainda preciso estar por questões profissionais tenham copiado sua mecânica e seus modelos de postagem e interação, o que explica a criação dos “shorts” de YouTube e dos “reels” de Instagram. E não raro coisas inicialmente criadas para o TikTok ganham todo um novo ciclo de compartilhamento e repostagem nesses espaços.
Assim, mesmo não estando no TikTok, já fui exposto o bastante ao seu conteúdo para chegar a algumas conclusões de viés sobre ao menos um dos efeitos de seu sucesso: uma legião de gente fazendo vídeos curtos para rápido consumo decidiu se dedicar ao humor – e só conseguiu produzir uma certa nova onda retrógrada de piadas calcadas em observação estereotipada.
A essa altura o público com um conhecimento superficial da plataforma ainda associa muito o TikTok aos “vídeos de dancinhas” com o qual ele se popularizou em sua origem (tendência que gerou seus próprios efeitos que mereceriam outro texto à parte, da proliferação de composições curtas com trechos bombásticos prontos para bombar na plataforma até a própria confusão gerada pelas remixagens constantes no pantanoso terreno do direito autoral). Mas a verdade é que o tipo de conteúdo produzido para a plataforma andou sofrendo algumas metamorfoses apesar de seu breve tempo de existência. Já foram virais as constrangedoras novelinhas de produção incrivelmente amadora (do roteiro à atuação) normalmente com uma mensagem edificante de matiz conservador inegável como “moral da história”. Os tradicionais “booktubers” do YouTube viram seus views escoarem em direção aos novos “BookTokkers”, que conseguem alavancar vendas de livros com seus vídeos (para mim) surpreendentemente curtos quando o assunto é livro.
Aliás, esse é outro efeito ainda pouco mapeado da popularização do TikTok: é a rede social em que até agora os influencers mais bombados têm tido mais sucesso em simplesmente… vender coisas. Assim como “a plataforma anteriormente conhecida como Twitter” tem suas TTs (sigla para “trending topics” que, dada a natureza do Twitter, poderia ser traduzida sem perda de sentido como “Todas as Tretas”) girando em torno dos assuntos mais comentados e muitas vezes essas TTS são manipuladas por bots com motivação política (o que talvez explique como o bolsonarismo se mantém relevante), no TikTok são populares as hashtags que funcionam como aquelas “correntes” que o pessoal compartilhava no colégio, com um tema de origem e cada um dá sua a interpretação para a brincadeira. E essas “correntes” são, no TikTok, muito voltadas para a indicação de consumo. O TikTok se tornou, sem que muitos estivessem prestando atenção, na rede por excelência à qual consumidores recorrem para descobrir produtos e gastar seu dinheiro com base nas recomendações de influenciadores famosos. Quer comprar produto de limpeza? Vai achar com a hashtag “cleantok”. Quer saber qual a melhor ração pra cachorro? Sempre tem alguém lá também. O TikTok é o lugar em que o conceito de “blogueirinha de moda” se expandiu até virar “blogueirinho específico pra provavelmente qualquer coisa”.
Curiosamente, todo esse conteúdo aborígene não parece circular muito para as outras plataformas, ou ao menos eu me cerquei das pessoas certas que não o compartilham. Mas uma coisa que originalmente surge no TikTok e vaza com frequência para outras redes é o conteúdo de humor, e a julgar pelas amostras que tenho visto, o atual humor de TikTok, e por extensão o humor de rede social como um todo, se resume a gente mal-humorada fazendo react cínico e a piadas/esquetes/encenações que dão novas roupagens a um tipo de humor que já era velho na época em que estreou A Praça é Nossa.
A maioria desses esquetes que chegaram à minha bolha, muitos deles protagonizados por casais jovens, bem mais jovens do que eu, amparam-se no que poderia ser considerado um comentário observacional bem-intencionado reforçando o batido tropo das “diferenças entre casais”, ao estilo “Mulheres são de Vênus, Homens são de Uranus”. Num deles, uma jovem chama o marido para um passeio dizendo “vamos ao cinema e depois comer alguma coisa num restaurante?” e a cena seguinte mostra o que o marido de fato “entende”: “Vamos sair para gastar dinheiro e depois ir gastar mais dinheiro”?
Parece uma tirada bobinha, uma espécie de “comentário bem-humorado” sobre as diferenças entre casais, mas fico pensando realmente a quem esse tipo de humor está falando. Talvez fosse algo que soasse engraçado em cartuns e tiras de jornal da primeira metade do século XX, mas fico pensando qual o apelo, o que faz algo assim soar engraçado para tantos em uma época em que mulheres trabalham, ganham seu próprio dinheiro e muitas vezes são mais responsáveis na manutenção do orçamento doméstico do que seus “maridos”.
Esse não é um exemplo isolado, qualquer navegada curta e distraída já apresenta uma série desses pequenos e despretensiosos vídeos que se amparam na ideia de uma dinâmica de casais mais apropriada ao início do século XX do que agora. Ao fundo, toca alguma música triste enquanto uma jovem chora e desliza desconsolada pela parede enquanto o texto na tela apresenta “coisas que meu marido diz que me partem o coração”. E as “coisas” são “não” e “não temos dinheiro”. Casal discutindo sobre o que a mulher deve fazer no jantar. Esquetes sobre filhos folgados ainda morando com a mãe e incapazes para a vida prática.
Muitos dirão que são piadas simpáticas feitas de bom coração por uma legião de humoristas amadores, alguns deles copiando uns aos outros ou traduzindo versões diferentes da mesma coisa publicadas em outros idiomas (às vezes o algoritmo te apresenta tanto a “original” quanto a “versão brasileira” na mesma sessão de navegação…)
O que há de mal na proliferação desse tipo de humor surfando no engajamento algo anestesiante dos algoritmos? De mal, de mal, nada especificamente, eu diria. De preguiçoso, muito. O que tem lá toda a sua categoria própria de problemas.
Quando se fala de humor e de seus sentidos subterrâneos no Brasil, corre-se sempre o risco de topar logo ali adiante com algum supervalorizado humorista nacional (ou pior, seus fãs) tendo um ataque de pelanca clamando por “tentativas de censura” e de “impor limites ao humor”. Não é o que tento fazer aqui, longe disso. O que estou apenas comentando é a ruindade mesmo desse tipo de “conteúdo”, para usar a palavra da moda, amparando-me em algo que eu próprio penso, mas que, em homenagem à turma do humor nacional, vou também justificar usando as palavras de Bill Burr, um humorista profissional também considerado “polêmico” mas cujo trabalho está anos-luz à frente dos lamentáveis exemplares nacionais que “inventaram o stand-up no Brasil”, como já vi Rafinha Bastos ou Gentili dizerem (esquecendo, por ignorância ou por pura desfaçatez mesmo, que Juca Chaves, Ari Toledo e Jô Soares, só para citar alguns, já faziam shows em teatro contando piadas muito antes de nossa geração nascer). Mas o Burr, eu dizia, diz o seguinte em um de seus números, em uma história na qual ele comenta a diferença de interpretações que ele e sua esposa teriam para um documentário que ele estava assistindo sobre Elvis:
“Minha mulher é negra. E eu odeio dizer isso porque parece que eu vou começar a fazer uma daquelas piadas de comparações estúpidas. Sabe, uma daquelas piadas de ‘cara branco versus cara preto’. E é sempre algo como o cara branco dizendo ‘ah, Deus, eu tenho de preencher minha declaração de imposto de renda, será que esta cadeira aguenta meu peso’, e o cara preto sempre diz ‘ Cara, você tem que relaxar, deixa rolar’. São sempre as mesmas piadas estúpidas de merda, eu odeio esse tipo de piada, porque elas são fáceis”.
É isso.
Humor de “observação de contrastes” quando os contrastes observados são estereótipos preguiçosos talvez não seja visto como algo que faça “mal” pela maioria justamente porque a preguiça, principalmente a intelectual, é uma aliada do conservadorismo de modo geral, o que deveria ser óbvio, quando menos você mudar as coisas, inclusive as danosas, menos energia você gasta. Não à toa a história do humor no Brasil, do teatro ao rádio, da TV ao TikTok, pode muito bem ser traçada pela ótica da preguiça, da repetição de fórmulas, da falta de criatividade e da busca de um riso fácil ancorado em uma sociedade que sempre fez do humor não “o castigo dos costumes”, ao mote clássico, mas a sua naturalização, por mais opressivos que esses costumes sejam…
Foto da Capa: Reprodução