Um amor arquivado ou deletado faz parte de quase toda vida humana adulta. Até então, parece inevitável passar incólume, sem algum tipo de baile relacional que nos retire o chão em algum momento. É um tal de pés que encontram bundas a todo instante, enquanto novas mãos vão sendo dadas. Se bem, é igualmente verdade que, às vezes, há pés que simplesmente passam a caminhar por rotas opostas. Acredito que essa é uma das condições do arquivamento, quer dizer, não poder encaminhar duas ou mais bundas para os mesmos rumos. Por outro lado, há certos traseiros que nunca se mexem, nunca se deixam atingir e isso é quase uma decomposição em vida a qual, ironicamente, se costuma chamar de comodismo.
Há coragem em declarar um amor. É como deixar o derrière a descoberto mesmo fora do carnaval, assim, na raça. No entanto, talvez, exista ainda mais coragem em dizer que o amor acabou ou que, pelo menos, já não se quer caminhar para o mesmo lado. Além do comodismo, tudo indica que a parte dura de anunciar que acabou chorare radica na necessidade de desdizer-se, de contradizer o “si mesmo” do passado. Natural. Não é nada fácil abandonar aquele eu do momento exultante de todas as promessas e de todas as certezas. Quem nunca vacilou nessa?
É estranho, mas algo semelhante parece acontecer com as idolatrias que, por sorte, também não são estáticas. Não raro, essas ficam como arquivadas, à espera de nossa visita revisionista. Recentemente, para afagar tardiamente a adolescente que fui, assisti a um show do Guns n’ Roses. Hoje sei o quanto não me representam: tudo muito branco, estadunidense, machista e capitalista. Contudo, tenho carinho pelo assovio de Patience, pela guitarra de Slash, ademais da bandana milimetricamente posicionada de Axl. Um arquivo para visitar com reservas, de todos os modos. Em todo o caso, o Guns não mudou muito, fui eu que fiz isso. Outros gostos, outros rumos.
Baby do Brasil / Baby Consuelo – cuja carreira se consolidou com o antológico grupo Novos Baianos – foi e continua sendo para mim uma das personagens femininas mais icônicas da música brasileira. Só que ela mudou. Aliás, é louvável sua coragem para mudar, assumindo por gosto uma verve mais religiosa. Até aí tudo certo. Entretanto, o bizarro duelo discursivo que estabeleceu há poucos dias com Ivete Sangalo, chamando o apocalipse em pleno carnaval, mostra que Baby não está mudada, mas reconfigurada.
A cantora que eternizou os versos de Menino do Rio, de Caetano Veloso, que escreveu com Pepeu Gomes – com quem foi casada – Sem Pecado E Sem Juízo, e que cantou Jorge Ben em uma canção que lembra que antes “todo dia era dia de índio”, agora parece usar todo o seu trabalho precedente como trampolim para ser mais uma super fundamentalista evangélica. Respeito todas as religiões e, inclusive com certo gosto, a ausência delas. Também respeito o Estado laico, um direito que termina por proteger as liberdades religiosas de todes. É certo que a música Gospel também merece respeito desde que, ademais, se respeite o tambor do terreiro.
Para mim, a cena patética entre Baby do Brasil (evangélico) e Ivete Sangalo – cujo constrangimento era evidente –, tem pouca coisa de cômica. Apenas ilustra a triste realidade de um país que está se afundando em um fundamentalismo religioso e cuja maior expressão cultural negra, o carnaval, vem sendo recolonizada e vilipendiada a olhos nus. Esse é um marcador aparentemente soft de um projeto em curso que não tem nada de espontâneo ou ingênuo. Não é de hoje que terreiros vêm sendo queimados por uma suposta “glória a Deus”. O Brasil de Bolsonaro foi e continua sendo uma nação, predominantemente, neopentecostal cujos líderes almejam um aplastamento da diversidade cultural e política. Em outras palavras, desejam toda uma Sapucaí aberta ao fascismo.
Uma pena que a irreverência e colorido de Baby, cujo legado e influência a própria Ivete reconhece, tenha se convertido nisso. A cantora está hoje na casa dos 70 e parece ter sido esse o caminho escolhido para finalizar sua carreira. Pelo jeito, é um nem tão lindo balão azul sem volta pra casa… No meu íntimo, ainda espero que “no canto do cisco, no canto do olho” a menina dance, mas, por enquanto, Baby, I’ don’t love you anymore.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube