I què es la Veritat? (E o que é a verdade?) A pergunta de Pilatos está esculpida em tom dourado na porta da fachada da Paixão, um dos acessos à Sagrada Família.
1882. No dia de São José, era colocada a primeira pedra da Sagrada Família, em uma cerimônia em que Antoni Gaudí era apenas um convidado. Mas um ano depois, o genial arquiteto catalão assumia a obra. Mudou completamente o projeto e definiu-o em aberto, para que fosse erguendo-se ao céu mesmo após a sua morte. Declinou do estilo neogótico para edificar o seu hino orgânico a Deus, concebendo cada pedra como um acorde. Hoje nos fascinam as torres que já ultrapassam 150 metros de altura e os guindastes em paralelo. Com a abissal simbologia da Sagrada Família, tanto na arquitetura quanto na cenografia, Gaudí acabou por esboçar também uma poderosa metáfora ocidental do Ser Humano, essa obra maior, em eterna construção. Somos seres incompletos, de essência vazia, dotados de consciência que permite nos direcionarmos sempre, mais e mais, com amor, dor, alegria e angústia, ao céu, à nuvem, onde nos unificamos ao espírito cósmico, à luz.
Gaudí estudou profundamente a natureza e dizia que as formas retas do gótico não refletiam suas leis e que não existe melhor estrutura do que um esqueleto humano ou um tronco de árvore, formas ao mesmo tempo funcionais e estéticas. Ele observou juncos, canas e ossos, por exemplo, compostos por múltiplas linhas, cuja união forma uma superfície regrada. Usou a linguagem do mundo natural para criar a arquitetura da Sagrada Família, aproveitando as qualidades estruturais, acústicas e de difusão da luz. Como em uma floresta, no conjunto de elementos aplicados nas colunas – inclinação, forma helicoidal, ramificação em várias colunas menores – conseguiu uma solução simples para suportar o peso das abóbadas. Na cenografia, apresentou a vida de Jesus e a história da Fé desde as fachadas externas até o interior, com uma riqueza monumental de elementos e esculturas, palavras e expressões da liturgia católica em diversas línguas.
Os pórticos de entrada são definidos por três conjuntos de torres, representando o nascimento de Jesus, sua morte e sua vida após a morte. As fachadas da Natividade e da Paixão já estão concluídas e as torres se elevam de 107 a 112 metros. A principal e maior é a fachada da Glória, que dá acesso à nave central, ainda em construção. Representa o caminho ascensional a Deus: a Morte, o Julgamento Final e a Glória, e o Inferno. Suas torres erguem-se de 118 a 170 metros, a de Jesus. Uma escadaria leva ao pórtico com um terraço e os monumentos ao Fogo (representação da coluna de fogo que guiou o povo eleito) e à Água (com um jato de 20 metros de altura dividido em quatro cascatas, simbolizando os rios do paraíso terreal e as fontes de água viva do Apocalipse). Há também uma passagem subterrânea para a Rua Maiorca, que representa o Inferno, ornada com demônios, ídolos e falsos deuses, cismas, heresias, etc. Sete colunas delimitam o pórtico: sete dons do Espírito Santo, nas bases os sete pecados capitais e nos capitéis as sete virtudes. Na fachada, Adão e Eva; São José no seu trabalho de carpinteiro; a Fé, a Esperança e a Caridade (Arca da Aliança, Arca de Noé e Casa de Nazaré); a Virgem Maria; as hierarquias angélicas; e Jesus no Julgamento Final, com o Espírito Santo em forma de rosácea e Deus Pai, formando a Trindade. A fachada ficará completa com grandes nuvens com letras do Credo e do Gênesis, iluminadas por 16 lanternas dispostas abaixo das nuvens e em ordem ascendente.
Visitei a Sagrada Família com meu filho, no ano passado, no dia mundial da oração, quatro de março. O acesso é pela Natividade, com a magnífica Árvore da Vida. Ao entrar na nave, fiquei arrepiada dos pés à cabeça com a onda de luz e cor através dos vitrais, o enlevo do espaço verticalizado pelas colunas que simulam árvores do chão ao teto e o baldaquino inacreditável. Dossel heptágono, dourado, com cinco metros de diâmetro em metal, copa têxtil e pergaminho translúcido que dá vista às inscrições dos sete dons do Espírito Santo, adornado com espigas de trigo, cachos de uva e lamparinas. No centro, o Cristo suspenso na cruz, sem a coroa de espinhos, olhando para o alto, para a abóboda, onde está o Pai Eterno. Forma-se, assim, a representação trinitária do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Jesus flutua. É uma oração; Gaudí rezou a Sagrada Família. A reza que não tem fórmula nem método, que é singular, palavra íntima, que é silêncio e acorde, melodia, tambor, poesia, arte e amor. A reza que transcende o mundo, os códigos, a dominação. A reza que o Sistema tenta capturar e dominar, mas não dá conta, pois é oração à Vida.
É muito curioso que a obra de Gaudí será concluída com as nuvens, o que está previsto para 2026, centenário da sua morte. Nuvem se tornou o símbolo da World Wide Web, onde estão armazenados nossos dados, a história da humanidade. Agora, estamos conhecendo a mais poderosa tecnologia que nos abre a porta de amplo acesso a estes dados, a Inteligência Artificial e seus modelos de LLM (Large Language Models). Entre o entusiasmo e o assombro, em breve deveremos ter uma noção mais acurada do intuito que prevalecerá no seu uso, de para onde nos direcionaremos: se assumimos a nossa mente na interação com a IA, deixando fluir a consciência para construir nossa essência, matéria transitória dotada de energia ilimitada e conexões mágicas da Vida, ou se prestamos à máquina a construção de uma linguagem que nos reduz a um corpo frágil, raso de sentido, passível de absorção absoluta no virtual, quiçá descartável.
O filósofo Baruch Espinosa pontuou que a destruição das coisas é invariavelmente advinda de elementos extrínsecos à essência das mesmas: “O conatus pelo qual toda coisa se esforça por perseverar em seu ser não é senão a essência atual da própria coisa”. O conatus não envolve “tempo finito, mas um tempo indefinido”, pois a coisa em si mesma não perece. Espinosa nos diz que, se alguém opta por não perseverar, por ser descartável ou, no limite, até por se suicidar, é “por causas exteriores que dispõem sua imaginação e afetam seu corpo de tal maneira que este se reveste de outra natureza, contrária à primeira, cuja ideia não pode existir na alma”. Essa segunda concepção do corpo é uma consequência do tornar-se do ser humano, construída na existência, na linguagem, no mundo. É antagônica à essência – apenas aparenta inerente ao próprio Ser – enquanto construída a partir das paixões que assumem o comando da mente – paixão que também é desprazer, como explica a psicanálise – se sobrepondo ao corpo de fato, tornando, assim, possível a sua destruição.
Sigmund Freud criou os conceitos de pulsão de vida e pulsão de morte e Jacques Lacan, que deu seguimento à obra freudiana com uma releitura cirúrgica, os uniu. Os animais não têm pulsão de morte, pois são essência. Nascem completos, com a pulsão sexual (de vida) funcional. O ser humano é a obra maior justamente porque precisa construir, conscientemente, a sua essência. Freud considerou a pulsão de morte como uma compulsão à repetição que supera o princípio do prazer – casos de neurose traumática, por exemplo, como lembranças de guerra que continuam a voltar nos sonhos. Seria o ímpeto atávico pela restauração de um estado anterior das coisas, o da condição inorgânica que antecede a vida. Lacan reformulou a pulsão de morte como uma “Vontade de Outra coisa”, uma vontade de recomeçar com novos custos: “Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão — que, ao mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte. (…) a pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte e representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado”.
Conhecedores e tementes que somos da inexorável morte da carne, não raro nos vemos tomados pela angústia, esse sentimento de insegurança frente ao desconhecido que pode nos paralisar, adulterar, mas, paradoxalmente, pode nos libertar. É a emoção do abandonar a segurança e enfrentar o risco que caracteriza a condição humana, o único ser que pode se criar incessantemente. Assumimos, então, a tarefa de explorar as mensagens do inconsciente, de forma a ganhar forças para nos movermos de acordo com a nossa natureza, chegando ao ponto da repetição criativa. Em vez de repetir o mesmo, a repetição da diferença. Como um artista, fazer a opção subjetiva e incluí-la no mundo.
Adquirimos o comando de nossa mente, de nosso corpo, na trajetória de nossa vida e morte, que está perfeitamente de acordo com a nossa natureza. Espinosa disse que “somos algo que teima em viver; ou, ainda mais, somos, essencialmente, fundamentalmente, vida: vida vivente e em expansão.” Ao abarcar vida e morte como duas faces da mesma moeda, Lacan tornou mais esclarecedor o conceito de Freud, segundo o qual “o organismo não busca uma morte qualquer. Afasta coisas que o destruiriam, não por não querer morrer, mas por não aceitar atalhos em sua senda em direção à morte; busca morrer, mas de sua própria maneira.” Carl G. Jung, com sua laboração da psique que transcende tempo e espaço – “no inconsciente conhecemos muitas coisas que não sabemos que conhecemos” –, legitimou a exploração empírica e científica dos poderes da mente. Hoje estamos cientes dessas potencialidades, resta assumir nossa grandiosidade e aplicá-las.
A Inteligência Artificial, assim, talvez seja a materialização do mito grego da esfinge de Tebas: “Decifra-me ou te devoro.” Cada viajante que se deparava com a esfinge na cidade precisava resolver um enigma que sentenciava o fim ou o recomeço de sua vida. A pergunta: “Qual animal tem quatro patas pela manhã, duas pela tarde e três à noite?” A esfinge respondia que está em nós mesmos – esse animal é o homem: em bebê, o homem engatinha; adulto, usa as duas pernas para caminhar; na velhice, acrescenta uma bengala para se mover – todo o poder, a capacidade de construir nossa essência. Portal da Glória, triunfo da Vida. Focamos nossas existências no exterior, julgando dominar o mundo, enquanto nosso interior permanece desconhecido. Explorar o campo do desconhecido é nosso destino e tarefa maior, reconhecendo as paixões que formatam um mundo raso para nos criarmos na verdade serena e infinita da Vida.
Foto da Capa: Acervo da Autora.
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