Para começar, quero deixar claro que a inteligência artificial não é inteligência. O conceito de inteligência vem da criação humana, orgânica e, no caso dessa ferramenta, ela é um grande arquivo de dados no qual basta perguntar sobre um tema, que a roda gira e há uma terceira “criação”, sobre citações de obras humanas.
Walter Benjamin, em A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica, demonstra que tudo é reproduzido, traz o conceito de “aura” e que a obra de arte só existia na criação única. Cada vez mais vivemos a cultura em pedaços, tanto no seu consumo como nas suas colagens de referências. A IA é a cultura em pedaços sem aura, não há subjetividade, são dados pré-existentes num sistema que absorve todas essas informações, alinha conteúdos e rouba a originalidade das obras.
Há grande diferença entre o que são referências, cópias e colagens. Grandes obras de artistas são feitas de acúmulos de experiências de vida, referências e juízos estéticos, não de plágios. São únicas. IA é puro plágio, que é a apropriação de conceitos. É o copiou e colou. Estética é modo de sentir e máquinas não sentem. Elas são programadas para cumprir padrões estabelecidos, como bem retratado no filme Blade Runner. A IA vive de capturar legados artísticos, mas há meios essenciais de criação que nenhuma máquina vai conseguir substituir.
Uma importante notícia, esse mês, sobre direito autoral foi que a Sony Music conseguiu derrubar mais de 75 mil músicas geradas por IA. O problema está na comercialização dessas “novas” músicas, que entram no streaming e geram danos comerciais. As grandes majors da cultura também correm atrás para criarem ferramentas que consigam captar o uso indevido dessas referências culturais, ainda desenvolvidas por humanos, que manifestam personalidades e vivências de um sujeito transcendental.
A Austrália tem trazido ao debate o conceito de um “novo” inventor e uma flexibilidade para o tema. Há várias questões em disputa na questão da IA. Além do uso indevido, quem deve ser identificado como coautor, quem vai ser responsável pela nova criação? Isso é sobre direito moral. Outra dúvida é a respeito dessa apropriação, como por exemplo, com quem ficaria o direito patrimonial, com a máquina que gerou um novo conteúdo? Há uma necessidade urgente de legislação específica e um tratado internacional.
É preciso que haja permissões prévias desses usos, principalmente, para uso de imagens e vozes de pessoas falecidas – aqui não é só uma questão de direito moral, mas um debate ético. Essa semana recebi um áudio feito com a voz de uma pessoa falecida que ia receber uma homenagem, na qual ela mesma convidava para o seu tributo. Grotesco, bizarro ou apenas uma ação de marketing para chamar público? Fico com o grotesco da comunicação, como Sodré e Paiva já nos brindavam na obra O Império do Grotesco.
Outra polêmica é a popularização do estilo visual de animação japonesa do Studio Ghibli, fundado por Hayao Miyazaki. Nas últimas semanas, bombam nas redes a transformação de fotos em desenhos no estilo desse anime e volta ao debate os direitos jurídicos – autorais, morais e patrimoniais. Para criar uma imagem no estilo do Studio Ghibli, basta acessar o site do ChatGPT. Em 2016, Miyazaki declarou que jamais desejaria incorporar essa tecnologia em sua obra e afirmou que seria “um insulto à própria vida”.
Enquanto for apenas uma brincadeira individual, sem fins econômicos, ainda não fere os direitos autorais. No Brasil, há o PL 2.338/2023 que prevê estipular o marco regulatório das IAs e das Big Techs. Com a legislação autoral atual, já é possível aplicá-la quando for usada para fins comerciais e políticos, mesmo sem a falta de leis específicas. O artista que se sentir lesado pode entrar na justiça e a responsabilidade recairá em quem pediu para a IA fazer a criação e a usou economicamente. Nem tudo é terra sem lei nessa cibercultura.
Ana Paola de Oliveira é jornalista, produtora musical, mestre em comunicação e especialista em direito autoral. Produtora executiva, assessora de imprensa e curadora. Produz fonogramas e licenciamento de músicas para audiovisuais. Foi professora da ESPM nos cursos de jornalismo e publicidade e propaganda. Repórter e crítica musical do Correio do Povo. Trabalhou como diretora de produção e assessora de imprensa na Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da Prefeitura Municipal de Porto Alegre na Usina do Gasômetro.
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