Acarajé é oferenda para Iansã no Candomblé e também a comida de rua mais antiga do Brasil. A atividade das baianas de acarajé foi registrada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como patrimônio cultural imaterial do Brasil em 2005, no Livro dos Saberes do Instituto. Por ser o registro de algo imaterial e vivo, a patrimonialização é feita para o ofício, não para a receita. O dia 25 de novembro é dedicado a essas profissionais.
Segundo a Associação Nacional das Baianas de Acarajé e Mingau, Receptivos e Similares (ABAM), a estimativa é que só em Salvador haja cerca de 3,5 mil baianas e aproximadamente 10 mil pessoas trabalhando em torno dessa atividade em todo o país, sendo 90% de contingente feminino.
A atividade da baiana de acarajé tem origem no começo do século 18, quando “escravas de ganho” saíam para vender seus quitutes, especialmente nas ruas de Salvador, Recife e Rio de Janeiro, e levar o lucro aos seus senhores.
Extraída dos ritos do Candomblé aos quais as baianas se situam com forte identidade – a iguaria é oferenda ao orixá Iansã – as baianas viram no acarajé forma de potencializar renda através da sua comercialização e assim conquistar a alforria.
Há diversos registros de que em África, principalmente na região da Costa da Mina, as mulheres eram mais voltadas para o comércio e negociação; por isso faz muito sentido que essa lógica tenha sido reproduzida por elas no Brasil. Como “escravas de ganho”, as mulheres se destacavam mais já que sabiam negociar, vender, trocar, como no caso das quituteiras. Elas conheciam os movimentos do mercado e souberam reverter isso para seus negócios. Algumas foram bem-sucedidas ao ponto de reunir recursos para compra da alforria de outros escravizados. Entre essas mulheres, refiro Zeferina, rainha do Quilombo do Urubu em Salvador, e Ana Teixeira Guimarães, em Minas Gerais.
A figura da baiana de acarajé é retratada ao longo dos séculos como uma mulher negra, quase sempre corpulenta, vestida de bata e saia volumosa, de turbante e adereços. Ela não virou quituteira por talento, mas por necessidade e sua vestimenta faz referência a sua obrigação de santo; seu protagonismo como mulher afroempreendedora e seu pioneirismo honram a Orixá a quem é oferecido o quitute.
A mulher preta é a primeira empreendedora do Brasil. Esse viés protagonista e criativo percebido durante os períodos colonial e imperial do Brasil surge como uma ancestralidade de subsistência vinda como memória africana.
A valorização da ancestralidade é o principal valor do modelo de negócio das afroempreendedoras, em que elas trazem a reponsabilidade de enaltecer a história dos antepassados. Esse movimento sistêmico pela integração da história e do saber daquelas que vieram antes repercute na construção da autoestima negra e na conformação de uma identidade racial.
Esse processo é materializado quando percebemos o agenciamento da estética negra nos produtos e serviços ofertados por essas empreendedoras. É um modelo referenciado na resiliência, inovação, inteligência, no senso de coletividade e responsabilidade com a comunidade das afroempreendedoras. Ingredientes essenciais para resistir e prosperar em um sistema ainda muito violento e racista.
As novas “baianas de acarajé” seguem hoje honrando aquelas que vieram antes. Donas do seu próprio negócio, essas mulheres fazem a roda da economia girar, atualmente, elas estão inseridas no grupo de empreendedores negros que movimentam R$ 1,7 trilhão por ano no Brasil, segundo o estudo “Empreendedorismo negro no Brasil”, realizado pela aceleradora de empresários negros PretaHub. Pretos e pardos representam mais da metade dos empreendedores do país – cerca de 51% dos brasileiros que tocam algum tipo de negócio. Destes, 52% são mulheres.
A unidade racial que o esse modelo de negócio carrega, rompe com práticas coloniais, impondo que se estabeleçam relações mais próximas entre negros empreendedores, de modo a permitir através desse coletivo identitário que aconteça uma maior circulação de renda entre negros para que possamos ocupar melhores lugares na pirâmide social, para finalmente começar a deter o ativo financeiro e não de ativo financeiro pertencente a alguma estrutura.
Iansã é símbolo de liderança. Orixá reconhecida pela sua garra e força, ela definitivamente não nasceu para ficar em casa. Reverência e inspiração para todas as afroempreendedoras na arte de criar, comandar e resistir. Eparrey Oya!
Alessandra Francisco Silveira é advogada, pós-graduanda em Direitos Humanos, responsabilidade social e cidadania global. É mentora de carreira e consultora em diversidade, equidade e inclusão na @_we_are_connected.