Andar pela cidade é um prazer e um exercício diário. Perambular pelos lugares conhecidos e descobrir novos. Apreciar o céu, a casa e o prédio bonitos, os detalhes contidos neles, a árvore, o jardim, os gatos e os cachorros que ali vivem, o canto dos pássaros. Cumprimentar as vizinhas e os vizinhos, espiar a rotina das famílias que se entrevê, a saída pro trabalho, a ida e volta da escola, a varrição da calçada, o retorno do supermercado, o banho de sol da bicharada da casa. E ao longo do caminho, cobrir de bom dia ou boa tarde as/os passantes, na expectativa de quem irá responder. E foi assim, nessas andanças, que fui fazendo alguns paralelos sobre a cidade, sua paisagem e temas ligados à longevidade e ao envelhecimento.
Desculpaí, arquitetos e urbanistas.
Logo de início, peço licença aos arquitetos e urbanistas para me meter onde não fui chamada. Afinal, não conheço nada sobre esse campo de conhecimento. Simplesmente sou uma caminhante curiosa e cidadã interessada nas transformações que enxergo.
O envelhecimento e o idadismo
Todos nós temos um ciclo de vida: infância, adolescência, juventude, adultez e velhice. E não apenas nós, animais humanos, os seres da Natureza também possuem seus ciclos de vida. Em cada fase de nosso ciclo de vida, é possível encontrar coisas boas e coisas ruins. Quem já não ouviu falar dos traumas ou das belezas da infância? Das angústias da adolescência, seus desarranjos hormonais e suas descobertas maravilhosas? Assim, a gente segue vivendo cada fase da nossa vida. No entanto, conforme envelhecemos, vamos tendo mais dificuldade de enxergar suas partes boas e valorizando as partes ruins. E, pior, porque vivemos numa cultura onde o belo é tudo o que remete à juventude, buscamos, por diversos meios, formas de nos tornarmos jovens novamente, como se isso fosse praticável.
E é aí que começa o idadismo, termo que se refere ao preconceito, estereótipos e discriminação em relação à idade das pessoas. A expressão ageism foi criada em 1969 pelo gerontólogo e psiquiatra norte-americano Robert Neil Butler, o termo idadismo foi adotado oficialmente pela Organização Mundial da Saúde – OMS em 2022, que também é conhecido como etarismo ou ageísmo.
A cultura jovencentrista refletida nos prédios da cidade
O não cessar de nascimento de prédios novos, brilhantes, cheios de concreto, colocando abaixo aqueles pequenos prédios e casas que até ontem tinham histórias, antigos, velhos, cheios de infiltrações, me faz lembrar uma mulher ou jovem, modernos, capazes, ágeis, cheios de juventude e hormônios, substituindo os idosos, agora considerados inúteis, atrasados tecnologicamente, cheios de rugas, varizes, usando fraldas e andador, sendo julgados sem nenhuma condição de seguir adiante. Mas também sem nenhuma tentativa de convivência.
Esses que, nos dias de hoje, são os prédios “modernos” serão o quê daqui a quarenta anos? Qual será a solução que encontraremos para eles? Repetiremos a mesma atitude? Iremos substituí-los por “novos” porque entenderemos eles como “antigos”? Fico a me perguntar: como seria numa família? Se um pai não dá exemplo de cuidado e respeito para com os mais velhos, o que dirá para sua filha e seu filho quando ele enfrentar a velhice? Estamos pensando sobre o legado daquilo que estamos fazendo hoje?
Temos medo de “demenciar”, mas quem provoca somos nós.
Com o passar do tempo, nossas referências vão sumindo. A ponto de tudo ficar num tom pastel: Lembra de onde ficava o… como é mesmo? Lá perto daquele outro lugar… aquele que fechou anos atrás e que agora é um prédio novo, sabe, né? Dia desses, me peguei tendo uma conversa assim, meio maluca, com uma amiga. A solução foi ir pro Google Maps… “demenciamos”, nossas referências foram apagadas da cidade, até que se esvaziaram das nossas memórias. Entristeci.
A intergeracionalidade
Assim como no envelhecimento dos seres da Natureza há coisas boas e ruins, e em todas as fases do nosso ciclo de vida, vejo o mesmo no que se refere à arquitetura, respeitando o gosto de cada um. Olha um prédio novo, pode ser lindo de morrer, moderno, cheio de inovação, mas também pode vir com sobra de construção nos canos, problemas estruturais, paredes finas e piso sem isolamento entre os vizinhos que descobriremos ao entrar. Num prédio velho, que não tem fiação para internet, nem interruptor de três pontas, o piso seja velho e não tenha suíte para todos os quartos, você talvez encontrará uma cozinha e tamanhos de quartos e sala imensos, a certeza de que não ouvirá nem será escutado pelos vizinhos, uma qualidade de materiais “de antigamente” que hoje jamais encontrará nos “novinhos”.
Mas, então, existe solução? Eu, como palpiteira de plantão e caminhante por prazer, adoraria ver uma cidade cheia de tudo, construções antigas, onde iria me reconectar com minha história e lembranças, e novas, por onde iria descobrir novidades e construir novas memórias. Quem sabe, “híbridas”? Onde as construções fossem reformadas e se atualizassem? Entretanto, na minha observação diária, parece que a cidade dos prédios novos está excluindo a dos prédios e casas antigas, precisa?
Por isso, lanço aqui o apelo, não sei pra quem – pois não é a minha área e nem sei para quem direcioná-lo – pra gente construir uma cidade com menos idadismo em sua arquitetura, respeitando e valorizando o ciclo do envelhecimento de nossas construções, sem provocar o esvaziamento da nossa memória, criando um ambiente de intergeracionalidade, uma convivência multigeracional. Para que, daqui a 100 anos, nossos netos possam conhecer, por meio da nossa arquitetura, uma Porto Alegre desde seu nascimento e de todas as suas décadas, e possam continuar sonhando e construindo a sua Porto Alegre.
Todos os textos de Karen Farias estão AQUI.
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