São reacionários ou progressistas os que lutam contra prédios de 300m de altura no quarto distrito, torres gigantescas no cais do porto, condomínios fechados e tantas outras propostas impactantes que os jornais anunciam quase todos os dias? Para responder a essa pergunta é preciso voltar ao passado e examinar o nascimento do modernismo brasileiro para entender como suas ideias de cidade se amalgamaram na noção de progresso e modernidade. Começou com Getúlio, ganhou força com Juscelino e velocidade de cruzeiro com a Ditadura Militar, gerando uma inércia muito grande. Não é fácil mudar o rumo desse navio. Porém, o mundo mudou e essa ideologia está ultrapassada sob muitos pontos de vista. Hoje, sem preservação não há progresso. E preservação aqui já não se refere só a dos imóveis. Agora se trata da energia, dos modos de vida, das ambiências naturais e de outros valores caros e necessários à contemporaneidade. Para entender a inversão da noção de progresso, é preciso, antes, se perguntar: de que progresso estamos falando? É a isso que eu gostaria de me dedicar a responder hoje.
Assistimos há muito tempo uma sanha demolidora sobre Porto Alegre. Escaparam da demolição, por pouco, alguns marcos importantes, como o Mercado Público, Chalé da Praça Quinze, Abrigo dos bondes, Teatro São Pedro, Casa de Cultura Mário Quintana, Gasômetro e o campus central da UFRGS. Mas por que tanta sede em demolir uma cidade? A coluna anterior Autorama de Porto Alegre mostrou a razão objetiva. Esses prédios estavam no caminho das vias que compunham o novo plano rodoviário para a capital. A maioria deles atrapalhava a sua implantação. Outros não, mesmo assim recebiam a sentença de morte.
Para mim, razões objetivas não são suficientes para explicar decisões tão drásticas. É preciso também que exista desapego, que a subjetividade social não demonstre interesse nesse tipo de imóvel. Alguns viam, evidentemente. Graças a eles – chamados, nos anos 1970, de subversivos, reacionários ou conservadores –, os prédios ainda estão aí. Mas imagino que ninguém, de sã consciência, proporia a demolição de um edifício para a passagem de uma avenida quando visse nele valor histórico ou arquitetônico. Esse é o ponto. Esses edifícios não tinham valor afetivo para a maior parte da população. Pelo contrário, eles eram vistos como trambolhos que atrapalhavam a modernidade, o progresso. Eram considerados velhos, sujos, ultrapassados. E não como antigos, como os vemos hoje. A cidade tinha tanta vergonha de seus prédios históricos que era moda, ou hábito, nos mesmos anos 1970, escondê-los atrás de fachadas postiças de alumínio. O que se via, desde a rua, eram reluzentes alumínios com gigantescos letreiros luminosos com os nomes das lojas e bancos. E por que isso?
Para explicar esse desprezo pelo patrimônio acumulado por gerações é preciso voltar um pouco mais atrás no tempo. O Modernismo na arquitetura ganha força no Brasil com o governo Vargas, quando o arquiteto Lúcio Costa e um grupo de arquitetos do Rio de Janeiro, então capital federal, foi prestigiado pelos intelectuais oriundos da Semana de 22 que orbitavam em torno do ministro de Educação e Saúde Gustavo Capanema. Eles foram contratados para projetarem a sede desse ministério, o primeiro e maior arranha-céu do movimento moderno em arquitetura do mundo. Como tinham participado do concurso de projetos para o mesmo edifício, sem vencer, Le Corbusier foi chamado, por seu prestígio internacional, para dar legitimidade à contratação dos arquitetos modernistas brasileiros.
Le Corbusier, líder intelectual do Movimento Moderno europeu, tinha uma visão refundadora da arquitetura e do urbanismo. Hoje, poderíamos dizer, de forma didática, que eles queriam “resetar” a história. Começar tudo outra vez e, dessa vez, da maneira certa (no entender deles, é claro). Com isso, tudo o que fosse anterior ao movimento moderno, passava a ser desprezível, digno do lixo e deveria ser substituído pela cidade arejada, com prédios isolados uns dos outros, com térreo livre em forma de parque entrecortado por vias de trânsito rápido para os automóveis. Vivia-se em uma época da apologia à máquina e, por consequência, da estandardização, da padronização, do fordismo. Na vida social e política, havia a apologia da organização das massas em colônias de abelhas sob mando de líderes, fossem fascistas ou comunistas: a abelha rainha e seus zangões – os militares garantindo o poder dos ditadores.
Na Europa, a bomba demolidora veio com a II Guerra e não com a ideologia modernista. Só que o europeu é conservador, preza sua história, e as cidades inteiramente destruídas pelos bombardeios aéreos – totalmente mesmo –, foram reconstruídas tal qual eram. Nada de aproveitar a ocasião para fazer brasílias por lá. Isso aconteceu com Berlim, Dresden, Varsóvia e tantas outras. Aqui a história foi por outro caminho. Brasília passou a ser o modelo de reconstrução de nossas cidades. O objetivo era esse mesmo, o da transformação radical da paisagem. Os edifícios, e até algumas casas, eram construídos sobre pilotis imaginando-se que um dia o solo seria coletivizado em forma de parque. Em vez de bombas sobre as cidades históricas, a força das marretas mecânicas.
Por outro lado, Lucio Costa, a maior cabeça pensante que a arquitetura brasileira já teve, fez uma ginástica teórica para transformar o modernismo corbusiano simpático ao modernismo brasileiro. Vale dizer que formou intelectualmente Oscar Niemeyer e se tornaram parceiros na aplicação de suas ideias. Uma espécie de dupla perfeita, tipo Pelé e Tostão, para quem gosta da linguagem futebolística. Pois bem, segundo Costa, o modernismo poderia ser considerado uma continuidade do barroco colonial português. O interregno do ecletismo e historicismo, do século XIX e início do XX, teriam interrompido o desenvolvimento natural da arquitetura legitimamente brasileira. Um discurso nacionalista sob medida aos modernistas brasileiros cada vez mais poderosos na administração Vargas. Não era uma arquitetura que vinha de fora. Ao contrário, era brasileira de raiz pela teoria dele. O que tinha valor, e deveria ser protegido, então, era a arquitetura colonial e a modernista. E foi o que fizeram criando o IPHAN, para logo tombarem Ouro Preto e outras preciosidades barrocas e, também, um pouco precocemente, os recém-construídos edifícios modernistas de Oscar Niemeyer, na Pampulha, em Belo Horizonte, e a própria sede do Ministério. Toda arquitetura que não fosse a colonial ou modernista, passou a ser liberada à demolição. Pior, condenada, pois era vista como sinal de atraso cultural.
Assim, foram criadas as condições para que a arquitetura e o urbanismo modernista se amalgamassem à ideia getulista de modernização do Brasil, fazendo par com a música de Heitor Villa Lobos, a arte de Portinari, a poesia de Ferreira Gullar e Drummond de Andrade entre tantos outros intelectuais que orbitavam ou trabalhavam no edifício que passou a ser referência e orgulho nacional da modernidade, a sede do Ministério de Educação e Saúde. Essa nova ideia de progresso e modernidade, então, colou nas mentes brasileiras e, junto com ela, vale repetir, a ideia de que tudo o que foi construído entre o barroco e o moderno não era bem-visto. É preciso se dar conta que isso foi sendo sedimentado por décadas, pegando gerações novas desde seu nascimento. E, até hoje, muita gente não consegue dissociar progresso dessa modernidade. A leitura do livro A ideologia modernista: A Semana de 22 e sua consagração, de Luís Augusto Fischer, é uma ótima referência para se entender o alcance e poder dessa ideologia.
Para infelicidade nossa, do Rio Grande do Sul e Porto Alegre, nosso patrimônio colonial era ínfimo e o eclético imenso. Assim, dentro da visão modernista, tínhamos muito pouco a nos orgulhar e muito a ofender a nossa visão. Assim não foi tão difícil para o interventor que os militares botaram na prefeitura, o Eng. Thompson Flores, sair derrubando quarteirões e quartéis antigos pela cidade. Parecia lógico demolir o Mercado Público para se obter uma ligação em linha reta entre as avenidas Siqueira Campos e Júlio de Castilhos, demolir os prédios da UFRGS para ligar os túneis à avenida Loureiro da Silva, que o Gasômetro e sua chaminé fossem derrubados para implantar as pistas da I Perimetral e assim por diante. Só que, nesses casos, o interventor municipal foi barrado por ativistas que sentiam afeto por esses imóveis.
Enquanto o mundo busca romper com o padrão de cidade rodoviária e parte em busca da cidade pedestre, caminhável e acessível à bicicleta e outros meios alternativos de locomoção e, também, da cidade composta por edifícios de baixa altura com atividades comerciais no térreo para formar vizinhanças, aqui seguimos em busca da mesma cidade modernista atenuada com a inserção de alguns elementos contemporâneos que a disfarçam: algum verde, bicicletários, tomadas nas garagens, placas solares e outros paliativos que a publicidade enaltece. Assim fica a pergunta: quem são os que estão sintonizados com a contemporaneidade, olhando para o futuro necessário e desejável para nossa cidade e quem são os que estão presos num desejo de progresso de um tempo que já passou? Precisamos entender que não há mais tempo para contemporizarmos com o capital egoísta-predador, o planeta não espera. A construção civil é um serviço necessário e que assim seja, mas se perde quando transforma habitação em produto industrial de consumo, vendendo, como qualquer grife, mais fantasia do que realidade. Basta ver a publicidade, focada na satisfação do indivíduo, para entender do que estou falando. Sim, a culpa não é das construtoras. É da sociedade. Somos nós os seres desejantes em busca de significado. Precisamos romper este ciclo, mudar radicalmente a nossa forma de pensar e viver.