Recentemente assisti a um filme bem despretensioso – Julieta, Nua e Crua (2018) –, cujo enredo desenhava um quarentão ainda muito aficionado por um ídolo da adolescência, desaparecido do cenário musical há mais de 20 anos. A idolatria cega da personagem estruturava uma vida que contornava a maturidade, prejudicando inclusive o seu relacionamento. A parte insólita (spoiler a caminho!) é que a sua namorada acaba encontrando, na vida real, esse ídolo perdido e, com ele, firma uma relação de amizade adulta e sem idealizações, na qual é muito mais percebida do que pelo companheiro.
É difícil passar pela adolescência sem a companhia de um ou mais ídolos. É como se estes fossem uma sorte de objeto transicional dessa fase que, por excelência, é puro trânsito. Os artistas surgem depois de nos darmos conta de que nossos pais não “eram lá tudo aquilo” – ainda bem e pelo bem da humanidade deles – e de que, não adianta; unicórnios e super-heróis são mesmo quimeras. Artistas (ou desportistas etc.), com sua imagem congelada e perfeita, podem participar da lenta construção das identificações e dos ideais. Os ideais ajudam a organizar uma vida e, enquanto não se consolidam, um ídolo cumpre esse papel, como um turbo no processo de identificação. Nos dois casos – ideais e identificação – o problema é a rigidez e o fanatismo. O filme traz como elemento cômico o fato, não tão raro, de o fã acreditar saber mais sobre o artista do que o próprio. E, ao mesmo tempo, traz o fato incontornável de que quando a obra vai para o mundo ela diz muito mais do que o artista pretendeu ou possa querer controlar.
Nossos delírios de interpretação acabam quando deixamos que o outro nos diga algo que não sabemos, efetivamente, quando aceitamos que não sabemos. O último dique, o último reduto das nossas forças interpretativas é o que recebemos do outro como diferença. E é aí que as tais identificações podem derivar em uma identidade, porque esta sempre estará forjada em uma diferença, mesmo que sua busca tresloucada seja por um igual. Com sorte encontramos equidades e equivalência. Nada mais abstrato do que uma igualdade.
Não por nada, Égalité! foi o que disseram os franceses em meio a conquista da liberté burguesa. E vá banhos de sangue e colonialismo, quer dizer, uma fraternité bem da boca pra fora. No entanto, com gosto acompanhamos a abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, na qual a diversité apareceu e incomodou os conservadores das ideologias da moral e dos bons costumes. Esses, que adoram uma liberté oculta e um laissez faire laissez passer para chamar de seu, não gostaram de ver o protagonismo da comunidade LGBT na cerimônia de abertura.
Nos servimos das diferenças para encontrar as nossas identidades para tão logo não suportar nada diferente daquilo que nos constitui. Se não cuidamos, uma nova idolatria ao nosso redor se forma e não toleramos mais do que estar diante dos mesmos espelhos. Daí a importância e a potência do que vimos no rio Sena nessa abertura.
Por ora, ainda vamos ter que nos dividir entre a transmissão das olimpíadas e as olimpíadas do cansaço dos mesmos conservadores de sempre nesta adolescência da humanidade.
Foto da Capa: Última Ceia com drag queens na abertura de Paris 24
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