O porto-alegrense tem uma relação quase erótica com a buzina do carro.
Sempre que saio da cidade, mesmo quando vou para algum centro urbano ainda maior, fico gratamente surpreso com o quanto se pode viver em um lugar mais silencioso, ou pelo menos que não seja tão estridente quanto Porto Alegre.
O motorista da frente demorou um segundo a mais para dar a partida quando o sinal ficou verde? Buzina. Alguém fez uma mínima menção de mudar de pista cem metros adiante? Buzina. Um pedestre cometeu o grave erro de dar aquela inclinada pra ver se está vindo algum carro? Buzina, claro.
Isso que nem estamos falando da sinfonia caótica dos motoqueiros. Trânsito parado, sinal fechado, e lá vem aquela falange de motos com sua ritmada sinfonia. Toques curtos e seco na buzina, talvez mais por cacoete do que por necessidade.
Tenho algumas teorias, todas elas furadas, para este prazer gaúcho pela importunação sonora.
Uma delas é um revanchismo histórico. Como perdemos a Revolução Farroupilha, temos entranhado em nós o ressentimento do gosto amargo da derrota. A qualquer nova possibilidade de nos vermos em desvantagem, sentamos a mão na buzina. Como um soldado calejado que diz: “Não de novo, não desta vez”.
Outra teoria tem a ver com o chimarrão. Sabemos bem ser hábito de uma parcela considerável da população gaúcha o consumo do amargo logo cedo pela manhã. Antigamente este costume era acompanhado da leitura do jornal ou da audiência ao Bom Dia Rio Grande. Hoje em dia provavelmente sorvamos o mate acompanhados do feed do Twitter ou do Instagram, não sei.
Também sabemos dos efeitos da erva mate no organismo: agitação, pensamento rápido e… vontade de urinar.
Aí que repousa minha segunda teoria para o furor buzinandis gaudério: o vivente sorve uma térmica inteira de mate logo cedinho pela manhã, então pega o carro para ir ao trabalho. Já estricnado pela erva no sangue, sente o espírito maragato tomando posse do corpo e, hirsuto de coragem antepassada e revolta inconteste, desce a Oswaldo Aranha com sangue no olho. Inconsolável por não poder puxar o facão três listras da guaiaca e dar uma de prancha ou de talho, ali pela altura do Ocidente inconforma-se com uma bicicleta na lateral da pista e apazigua seu ressentimento num tremendo buzinaço.
“Não de novo, não desta vez”.
Aliado a isso, temos o já referido caráter diurético do chimarrão. Ao entrar no viaduto da Conceição, abrigado por aquele lusco-fusco que o acompanha até a Alberto Bins, nosso maragato contemporâneo começa a sentir que algo se agita na região sul do corpo. Tomado de meridional necessidade de urinar, senta o pé no acelerador por uns cem metro até a altura do antigo cursinho Unificado.
Sinal fechado. Começa a subir aquela angústia fandangueira, bexiga inquieta, e o bagual assovia o canto alegretense como quem busca um refúgio. Mas não adianta. Abriu o sinal. A luz de freio do carro da frente ainda está acionada. Como pode? Abriu o sinal!
Buzinaço.
“Vai ou não vai, meu velho?”.
Buzinaço.
O veículo da frente liga o pisca. É um Uber, pra desespero do nosso incontinente conterrâneo.
Mais buzinaço. Dessa vez tão alto que dá pra ouvir ali da Santa Casa, quem sabe até do Mercado Público. Numa dessas, até lá do Barra.
Com sorte, chega em alguns minutos no local de trabalho, dá aquele bom dia à moda campestre (Buenas e me espalho!) e finalmente segue o rumo do próprio coração em direção ao banheiro. Aliviado, lembra desta terra que amou desde guri e, um tanto arrependido pela buzinança toda, senta-se na frente do computador repensando se realmente tínhamos que ter nos insurgido contra os federalistas.
Pensa no guaipeca jogado no pelego da casa de infância e bate aquela saudade de uma época mais silenciosa. Aliás, lembra do tal guaipeca porque alguém no TikTok fez uma dancinha ensinando como domesticar o seu cão em seis passos. Ou algum conhecido postou um story no Instagram com a focinho do seu cachorro e, de fundo, torando em alto volume, Dog days are over.
O que é irônico, porque não faz sentido uma foto do cão com essa música. É até mau-presságio.
Mas quem hoje em dia consegue pensar na internet, afinal? Quem ainda se permite aquele pequeno intervalo entre ver algo e comentar? Quem não senta a mão na buzina quando alguém fala alguma coisa com que não concorda?
Alguns com erva-mate, outros com Ritalina, parece que estamos todos cada vez mais alérgicos ao silêncio. Como efeito colateral, também temos deixado de pensar. Afinal, é impossível refletir efetivamente quando tudo nos chama pra fora de nós mesmos: a buzina, o wap para varrer as folhas, a escavadeira que vai derrubar uma charmosa casa e colocar uma farmácia ou mercado no lugar.
Como não se insurgir contra tudo e contra todos quando o mundo nos é narrado como um Grenal na rádio, em velocidade 1.5x e cheio de intervalos comerciais?
Como baixar o volume?
Aliás, quando foi a última vez que ficamos em silêncio? Mas silêncio mesmo: sem TV ligada, sem música rolando de fundo, sem um reels colonizando a nossa – já parca – atenção? Quem ainda tem vocação para a sabedoria de Bibiana Terra em uma terra tão repleta de Capitães Rodrigo?
Caro leitor, fica aqui a pergunta: quando você esteve pela última vez no aconchego quieto de um pago familiar?