Porto Alegre está realizando a iluminação noturna das fachadas dos seus edifícios considerados de importância arquitetônica ou histórica, que não deve ser confundida com a iluminação pública instalada nos logradouros públicos visando o conforto e segurança da população.
Segundo a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, a iluminação cênica faz parte do plano de modernização da iluminação pública da capital fruto da parceria público-privada entre a municipalidade e a concessionária IPSul.
Há décadas, tornou-se corriqueira a iluminação noturna das fachadas dos monumentos. Esta prática surgiu no hemisfério norte, espalhando-se por todo o planeta. Iluminar monumentos e edifícios de interesse histórico e/ou arquitetônico tem se tornado uma característica da segunda metade do século XX e deste primeiro quartel do século XXI.
Nereida Passos dos Reis Eloy (2014) lembra que a difusão deste tipo de iluminação deveu-se ao desenvolvimento tecnológico dos equipamentos, o que possibilitou uma iluminação noturna diferenciada. A França se destaca na iluminação urbana de qualidade e sua abordagem criteriosa tem sido referência para diversos países. Sob o ponto de vista da escola francesa, a iluminação das edificações teve início com uma concepção clássica, que nasceu da vontade de reproduzir a iluminação diurna com refletores dispostos ao redor do edifício de forma a iluminar os pontos principais da fachada, sem algum destaque ou preocupação estética.
Na abordagem contemporânea de iluminação de monumentos, Eloy defende que a iluminação deva ser pensada de maneira original e independente. Já não há intenção de representar a iluminação diurna, mas sim a visão sensível do iluminador, para criar diversas leituras diferentes para um mesmo monumento, valorizando a arquitetura original, mas sem descaracterizá-la, posição corroborada por Mauri Luiz da Silva: quando se trata de bens culturais imóveis, a iluminação torna-se definitivamente arte pura, pois além de lidar com a luz devemos entender o valor artístico de cada prédio e de cada monumento. É importante ter sempre em mente a legislação, que manda respeitarmos as características do prédio (SILVA, 2009, p.140).
Não há um consenso quanto ao uso da iluminação cênica. Há quem defenda que não se deva usar, quem entenda que excepcionalmente seja aplicada e aqueles que afirmam que se deva aplicar cada vez mais a iluminação cênica nos monumentos e edifícios notáveis das cidades.
Os que a defendem, afirmam que ela pode colaborar na preservação destes bens culturais, valorizando-os e evidenciando-os. Para Eloy (2014), a poética que a luz cria ao destacar uma edificação histórica enaltece a obra que resistiu, durante anos, à passagem do tempo e que continuará a ser um referencial de uma determinada época, contando às gerações futuras a sua história. Esta autora destaca que o valor da iluminação de um monumento histórico revela-se não só pela importância de determinada edificação, mas também pela transformação que provoca no contexto urbano em que está inserida, interferindo em aspectos como o incentivo a investimentos públicos em projetos de revitalização e a valorização da região como estímulo para o desenvolvimento de atividades turísticas, sociais e culturais.
Para José Canosa (2003), ao projetar a iluminação de uma edificação, um bem tombado ou até mesmo de um elemento da natureza, o lighting designer deve ter consciência de estar trabalhando sobre uma obra alheia, seja da natureza ou de outro artista, com sensibilidade e profundo respeito pela criação, preservando sua identidade e lembrando que a iluminação não é mais importante que o monumento ou o edifício a ser iluminado, devendo expressar uma releitura noturna, cuja sensibilidade criativa deve evitar a descaracterização da obra. Assim, a iluminação de fachadas dos bens culturais imóveis deve mostrar a arquitetura como ela é, não devendo criar novos efeitos visuais.
Para ter sucesso, o projeto de iluminação em um bem imóvel de interesse cultural exige a formação de uma equipe multidisciplinar composta por especialistas em história da arte e da arquitetura, arquitetos, urbanistas, paisagistas, engenheiros eletricistas, entre outros profissionais, para garantir que a iluminação a ser projetada permita entender a edificação em seus aspectos histórico, arquitetônico e de inserção na paisagem, respeitando a intenção original de quem a projetou. “Devemos sempre lembrar que estamos destacando o patrimônio e não utilizando-o para criar um show de iluminação” (GODOY; CANDURA, 2009, p.61).
Outro aspecto a destacar é a instalação da iluminação cênica. Eloy (2014) salienta que a passagem da fiação e a instalação das luminárias devam ser executadas de forma a atingir o mínimo possível a estrutura da edificação e também não interferir visualmente além do necessário, ficando o mais discreto e desapercebidas possível.
Contrário à iluminação cênica, posiciona-se o advogado e arqueólogo Ulysses Pernambucano de Mello Neto. Foi a primeira manifestação que vimos, sobre este assunto, num artigo intitulado “Patrimônio cultural construído, cena e cenário”. Nela Ulysses lembra que “O monumento iluminado à noite emerge do ambiente físico em que está situado, antepondo-se e evidenciando-se. A luz artificial externa, ao salientar o imóvel, amesquinha e dilui o ‘em torno’. Assim ‘isolado’ o edifício ganha em importância, porém, anula a paisagem em derredor. É possível identificar, nesta simulação do vazio em volta do objeto antigo, o desejo de estabelecer entre este e a paisagem ‘distinção e distância’, ou distinção pela distância”.
Ulysses vale-se ainda da Carta de Veneza (1964), uma das recomendações internacionais mais relevantes quando o assunto envolve obras arquitetônicas excepcionais e as ruínas arqueológicas: “O monumento compreende não só a criação arquitetônica isolada, mas também a moldura na qual é inserido. O monumento é inseparável do meio em que se encontra situado”. E questiona: “Isolado pela fronteira da luz, que separação maior poderia ser provocada entre o ‘cenário’ e a ‘cena’ diante do espectador?”, diz ainda: “Mais do que separação. Mais do que insulamento. A luz artificial noturna incidente sobre o edifício nega a circunvizinhança deste e esconde o ambiente do qual é parte integrante”.
Este autor lembra também que este isolamento do monumento em relação ao seu entorno, ocorre há mais tempo. Diz ele: “Há algumas décadas os técnicos em urbanismo, que intervinham em áreas onde existiam monumentos considerados patrimônio cultural imóvel, buscavam fazer sobressair e valorizar o edifício notável, removendo cirurgicamente, pela demolição, as interposições que estorvassem a livre fruição visual do objeto”. E compara: “Abandonada esta velha e ultrapassada técnica urbanística da mise en valeur, persiste todavia resultado similar ao da demolição da moldura dos monumentos: a iluminação externa dos edifícios durante à noite. Este procedimento dito ‘moderno’ parece prejudicial se olhado o problema pelo prisma do conjunto urbano do qual o imóvel é parte: o exagero dramático da ‘cena’ em detrimento do ‘cenário’, significando este último a ambiência na qual está incluído o monumento.”
Ulysses argumenta ainda que “a iluminação do exterior que se faça incidir sobre o edifício antigo para valorizá-lo é, paradoxalmente, o indicativo de uma compensação à ausência de qualidades no monumento, resultado inverso do pretendido pelo idealizador do artifício. A iluminação externa, mesmo discreta, isto é, com dissimulação do equipamento refletor, cria sombras e inventa ou sugere presenças, tornando quase sempre a edificação misteriosa e falsa. Vale registrar que a iluminação aposta ao imóvel, por acréscimo do urbanista ou arquiteto, não estando na cogitação nem no plano da obra, é também um desrespeito à criação do artista.
É enfático: “Creio que o edifício histórico – em especial o barroco – iluminado ‘artisticamente’ pela parte externa é inautêntico”. Cita Evaldo Coutinho que escreve que “O barroco ‘requer, para se expor, meia luz, em vez da luz total dos classicistas”. E conclui: “A iluminação artificial, portanto, não é essencial à compreensão do monumento e prejudica a leitura do trecho urbano em que está colocado o imóvel e deverá ser evitada, admitindo-se essa prática quando ocasional e temporária, ou em casos excepcionais, como os exemplares da arquitetura racionalista, pois no entender de Evaldo Coutinho, estes edifícios eram construídos ‘de maneira que toda a factura arquitetônica emergia num banho de luz’.”
O autor deste texto, que não é especialista em iluminação de edificações, mas é na área de edifícios e monumentos de interesse cultural, entende que excepcionalmente uma edificação isolada ou um conjunto de edificações venham a receber iluminação cênica, por compreender que na contemporaneidade este tipo de iniciativa tornou-se corriqueira, e portanto, veio para ficar, apesar da forte e incontestável argumentação apresentada por Ulysses Pernambucano de Mello Neto. Em se tratando das edificações modernas e contemporâneas, a iluminação cênica não nos parece prejudicial. Como disse Evaldo Coutinho, destacado por Ulysses, a luz inclusive faz parte até mesmo da concepção das edificações e monumentos. Exemplo claro em Porto Alegre são as fachadas da Fundação Iberê Camargo e do Estádio Gigante da Beira Rio. Inclusive, propositalmente mudam de coloração para marcar datas importantes, no caso da primeira, contribuindo para campanhas de interesse público como o “outubro rosa” e o “novembro azul”.
Mas o que é que a iluminação cênica que vem sendo utilizada em Porto Alegre tem a ver com tudo isso?
Nos edifícios abordados até o presente, não vêm sendo respeitadas as edificações de interesse cultural. Os autores da iluminação cênica adotaram soluções comprometedoras. Para ficarmos apenas naquilo que é gritante, não há um critério claro para a compreensão das intervenções enquanto conjunto na totalidade dos imóveis atingidos pelo projeto e as fachadas parecem servir como suporte para experiências primárias.
Nas fachadas do Mercado Público, por exemplo, elementos decorativos são ocultados (como os balaústes das platibandas e as pilastras da fachadas); os frontões recebem quatro pontos de luz sem sentido, que dificultam a sua leitura (aliás, parece ser este o propósito); as aberturas são destacadas, mas as pilastras entre elas são ocultadas, da mesma forma que os suportes das platibandas são destacados mas os balaústres são ocultados; nos pórticos de acesso e nos torreões das esquinas da edificação, luzes azuis criam manchas sem sentido, ou há algum sentido?
No Edifício José Montaury, que muitos dos leitores conhecem por “Prefeitura Nova”, atrás do Paço Municipal, na rua Siqueira Campos, nº 1300, vizinho ao mercado, só o coroamento, isto é, a parte superior do edifício parece ter recebido a iluminação cênica. As luzes focam pontualmente em alguns elementos deste coroamento, sendo que nas esquinas, como no mercado, luzes verdes sem nenhum propósito, parecendo vir de dentro do edifício, ajudam a ofuscar e ocultar os elementos decorativos principais criados pelo autor da obra, arquiteto Christiano de la Paix Gelbert.
Pior ainda é o resultado do prédio da Pinacoteca Municipal Ruben Berta, situado à Rua Duque de Caxias, nº 973, quase esquina com a Rua General Auto. Lá também a fachada da edificação também não foi iluminada na sua totalidade, prejudicando ainda mais a leitura da mesma. Se não bastasse, a iluminação foca na porta principal e no coroamento (frontão e platibanda). Neste caso, a luz verde, também sem propósito, como nos exemplos anteriores, não contribui para nada. Está entre as duas janelas situadas abaixo do frontão.
Por falta de espaço, ficamos nestes três exemplos. Sabemos que cerca de setenta imóveis deverão ser “contemplados” com a iluminação cênica citada. Pelo exposto, os resultados são no mínimo questionáveis, para não dizer preocupantes. As fachadas parecem servir apenas de suporte para experiências meramente “artísticas”, ou, com a proximidade do fim do ano e dos meses de recesso, para enfeites natalinos ou carnavalescos?
Começamos a pensar que o patrimônio cultural está sendo visto como um entrave aos interesses dos nossos administradores. A propósito, quando será retirado o asfalto que prejudica o entorno da Igreja de Nossa Senhora das Dores? Pelo menos as leis deveriam ser cumpridas.
Bibliografia:
CANOSA, José. O Potencial Cenográfico da Iluminação de Monumentos e Fachadas. in Revista Lapro Fachadas & Monumentos,04, p. 28-12, 2003.
COUTINHO, Evaldo. Espaço da Arquitetura. São Paulo: Perspectiva, Perspectiva; 2ª edição, 2010.
ELOY, Nereida Passos dos Reis. A Iluminação da Arquitetura Tombada – com Abordagens de Monumentos no Centro Antigo de Salvador. Revista Online IPOG, Especialize. Dezembro, 2014. Disponível em: http://docplayer.com.br/37552772-A-iluminacao-darquitetura-salvador.html. Acesso em: 14/09/2023, 08:45h.
GODOY, Plínio; CANDURA, Paulo. Iluminação Urbana Conceitos e Análise de Casos. São Paulo: Editora VJ, 2009.
MELLO NETO, ULYSSES Pernambucano de. Patrimônio cultural construído, cena e cenário. Boletim número 23 – SPHAN/pró-memória, Brasília: março/abril de 1983, p. 17.
SILVA, Mauri Luiz da. Iluminação: simplificando o projeto. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2009.