Não sou tão assíduo, mas aconteceu de eu ir a dois concertos da OSPA seguidos. Orquestra impecável, maestros maravilhosos. O primeiro, regido pela maestra Zoe Zenioldi e solo do violinista Moisés Cunha tocando Vagner Cunha e Schoenberg. O segundo, com o maestro Manfredo Schmiedt, a majestosa Nona Sinfonia de Beethoven. Uma amiga, numa das noites, deu o tom: eu preciso de orquestra, não vivo sem. Ela, e eu, tivemos sorte, fomos muito bem contemplados.
Foi no segundo concerto que meus pensamentos vagaram sobre a semelhança entre música e arquitetura e de como o ato criativo em ambas está mudando. Um assunto que me inquieta. Vou explicar porquê.
Os compositores organizam suas obras a partir de sons (notas); nós, arquitetos, com o que chamamos de elementos de arquitetura: paredes, colunas, escadas, portas e janelas e assim por diante. Tanto os compositores quanto os arquitetos costumavam compor mentalmente, com a imaginação, de olhos fechados por assim dizer. Costumavam, hoje cada vez mais os olhos estão abertos e voltados para as telas dos computadores, escolhendo o que aproveitar para uma nova obra e modelando em tempo real. Pode parecer que não tem diferença, mas uma coisa é criar dentro, outra é criar fora do cérebro.
Considero a Nona Sinfonia um ótimo exemplo para demonstrar a criação interna, mental – não porque Beethoven estivesse surdo no momento da sua criação. Mesmo que não estivesse, não passaria pela cabeça dele reunir uma centena de músicos e pedir a cada um que tocasse isso ou aquilo simultaneamente, ou não, com os demais. Já imaginaram a loucura que seria? Dali não sairia nem de longe a música que transcende suas próprias partes, seus elementos, e que há dois séculos encanta os ouvidos do planeta.
Como ele fez? Simples (contém ironia), sozinho com uma partitura em branco foi estabelecendo as notas de cada instrumento e o momento em que cada músico deveria entrar e participar da audição. Foi extraindo a música que sua imaginação criou a partir de seu conhecimento musical, vivências, intuições e, certamente, um inconsciente muito ativo como auxiliar de produção.
O arquiteto, da mesma forma, não junta num canteiro de obras uma dezena de operários e começa a pedir, levante uma parede ali, agora uma escada aqui, não, mais para lá. Nada disso, vamos começar outra vez. Ele precisa ter em mente o que deseja.
Um pintor pode fazer isso. Vai experimentando, conversando com sua tela em branco. Iberê Camargo quando chegava a um beco sem saída – por não ver na tela o que tinha imaginado – não tinha dúvida, borrava tudo e começava outra vez. Sem problema. O compositor e o arquiteto não agem assim, não podem ver e ajustar o resultado à medida do andamento da obra. Ou não podiam. Hoje, sistemas sofisticados de software permitem aproximações incríveis da realidade. Na música, até mais do que na arquitetura, pode-se compor como se faz uma colcha de retalhos, juntando partes. Vivemos na era da colagem.
Para extrair de suas mentes o que a imaginação criava, os arquitetos e compositores estabeleciam um diálogo consigo mesmos através de desenhos e anotações em papel. Nós, arquitetos, chamamos de croquis esses rascunhos ininteligíveis para terceiros. Eles fazem parte de uma conversa privada em uma língua particular. Através desse canal de comunicação com seu mundo interno, a razão assume o poder decisório e desenha, em linguagem inteligível, cristalina, o projeto ou, no caso do compositor, escreve a partitura final.
É verdade que um compositor sempre pode sair tocando um instrumento e depois escrever o que tocou, assim como um arquiteto, pode levantar uma cabana, terminá-la e desenhá-la posteriormente se assim o desejar. Mas eles não vão fazer isso na base da tentativa e erro, ainda que ocorram. Eles terão uma ideia guia em mente, imaginada de antemão.
Hoje, a criação migrou para o caminho da seleção e escolha. Os alunos, e não só eles, têm diante de si um grande cardápio. Basta escolher e juntar para fazer um novo jantar, já que estou usando a imagem do cardápio do restaurante. Na arquitetura chamam isso de referências. Até os professores perguntam: quais foram tuas referências?
Os resultados podem agradar, mas são muito próximos do que a Inteligência Artificial faz: mais do mesmo. O exercício de criar internamente – esse mistério da imaginação – está sendo abandonado. A criação, seja da arquitetura ou da música, está se tornando visual e auditiva, de opções. Já não é preciso imaginar onde se quer chegar. O cérebro não precisa trabalhar nesse sentido. Um exemplo mais simples de entender: se você queria ir a determinado endereço na cidade, você mentalizava percursos alternativos e escolhia o melhor. Hoje você escolhe as opções do Waze. Facilitou? Sem dúvida, mas qual o custo de não abstrair, a longo prazo? Na minha opinião, algo de importante aí está sendo jogado fora.
Essa maneira de ensinar tem uma razão de ser. O período anterior, do Movimento Moderno, primava pela originalidade, ainda que falaciosa. Referência, cheirava a cópia, máximo pecado. A roda tinha que ser inventada a cada vez, como se não existissem bibliotecas. Caímos no outro extremo.
Não são as referências que me incomodam, pelo contrário. Só acho que elas deveriam ser absorvidas via exercício de abstração e não de forma visual, literal, como tem acontecido. Isso porque na arquitetura cada projeto é um projeto, cada arquiteto é um arquiteto e tem sua forma de responder a uma necessidade que também é única. Ele vai encontrar sua solução a partir de vivências em múltiplas arquiteturas que lhe deram um repertório e, principalmente, em seu mundo interno. Uma leitura bibliográfica exaustiva, tão bem feita quanto solfejar uma partitura de terceiros se a música não fosse acessível para um compositor (o que hoje em dia é raro), além de frequentar obras referenciais da arquitetura, é fundamental.
A arte não deixa de ser uma conversa entre artistas e gerações de artistas. Essa conversa, para ser significativa para a própria arte, tem que ser profunda, estar entranhada no artista. Beethoven era gênio, sim. Ele tinha a capacidade de sintetizar um pensamento musical que estava solto no ar como nenhum outro. Ou você acha que Beethoven não era um profundo conhecedor da música europeia de sua época?
Foto da Capa: Constança Pondé / Divulgação
Todos os textos de Flávio Kiefer estão AQUI.