Os efeitos da tragédia que aconteceu no Rio Grande do Sul são de toda ordem, geraram e ainda causarão muitos danos para as vítimas, sejam danos materiais, morais, lucros cessantes, sem falar nos danos ambientais e para a economia do Rio Grande do Sul como um todo, o que obviamente irá refletir negativamente para o país também.
Dentre os diversos efeitos, já se vislumbra o impacto sobre os contratos de locação, tanto os referentes a locações residenciais, que são aquelas destinadas à moradia do locatário, quanto aos referentes às locações comerciais, que são aquelas destinadas para o exercício de atividades comerciais, industriais ou para a prestação de serviços.
Como se verifica, muitos imóveis foram destruídos, total ou parcialmente, foram inundados, deteriorados, ou mesmo ainda que não tenham sido atingidos, ficaram cercados pelas águas, sem acesso à eletricidade e à água tratada, por semanas, e até mesmo sem acesso físico que permitisse o transporte de pessoas ou coisas, pois as ruas, estradas, pontes, ferrovias etc. foram de alguma forma obstruídas, deterioradas, ou até mesmo destruídas.
Deste modo, muitas pessoas que alugaram imóveis, que ficaram cercados ou isolados pelas águas e pela lama, ou tiveram até mesmo de abandonar, às pressas, tais imóveis ou serem resgatadas, ficaram tão traumatizadas que não querem mais continuar a usá-los como habitação ou para as finalidades comerciais consideradas no momento das contratações. Sem falar que muitos locatários perderam suas fontes de renda e não podem continuar com tais contratos.
Como cada relação contratual tem suas peculiaridades, é muito importante a leitura e a análise de cada contrato, para saber qual a melhor solução para eventuais impasses.
Apesar disso, analisarei algumas hipóteses, de acordo com algumas decisões de nossos tribunais, que podem servir como norteadoras, em caso de conflitos:
Rescisão antecipada por evento imprevisível
Verifiquemos a rescisão antecipada do contrato de locação em razão de evento imprevisível que impeça a ocupação do imóvel, torne o imóvel imprestável para o fim que se destina.
Nesta situação, a meu ver, o locatário poderá rescindir antecipadamente o contrato de locação, sem pagamento de multa contratual, mas perderá a caução se sair antecipadamente. Vale destacar que a própria lei de locações estipula que o locador deve, durante a locação, manter a forma e o destino do imóvel.
Veja-se as seguinte decisões, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE COBRANÇA – CONTRATO DE LOCAÇÃO – MULTA RESCISÓRIA, ALUGUÉIS EM ATRASO E RESSARCIMENTO DE DANOS NO IMÓVEL – RESCISÃO ANTECIPADA UNILATERAL – FATO IMPREVISÍVEL – ENCHENTE – MULTA INDEVIDA ….
Ocorrendo a rescisão antecipada do contrato de locação em razão de evento imprevisível (enchente) que impeça a ocupação do imóvel, incabível a condenação do locatário ao pagamento de multa contratual”
“LOCAÇÃO DE IMÓVEL – Ação de anulação de negócio jurídico com restituição de valores e indenização por danos materiais e morais – Enchente ocorrida em virtude de fortes chuvas que causaram prejuízos de grande monta à locatária, que perdeu todos os bens que possuía no interior do imóvel. Alegação de vício de consentimento, por ter a locadora omitido o risco de ocorrência desse tipo de eventos no local – Danos morais – Evento ocasionado por força maior, caso fortuito – Temporal intenso e excepcional, que atingiu a região e causou estragos além do normal a vários moradores – Ausência de responsabilidade da locadora pelo evento da natureza que causou danos à Locatária – Imóvel entregue em perfeitas condições de habitabilidade – Infração contratual da locadora inocorrente – Caução que objetiva garantir o contrato de locação, não sendo caso de devolução à locatária, ante a entrega antecipada do imóvel – Danos sofridos que não configuram responsabilidade civil – Recurso improvido.
Rescisão antecipada por evento previsível
Agora vamos à rescisão antecipada do contrato de locação em razão de “evento previsível” que impeça a ocupação do imóvel, torno o imóvel imprestável para o fim que se destina.
Nesta situação, se o fato era previsível, a meu ver, se o locatário estava ciente de que o imóvel estava impróprio para uso, foi alertado pelo locador quando da celebração do contrato de locação, ele não terá direito a postular perdas e danos.
Saliento que existe entendimento que, mesmo na circunstância do locatário não ter sido alertado pelo locador sobre a previsibilidade, sobre o risco de enchente, cabe à pessoa que irá alugar o imóvel verificar todas as condições de uso e a localização.
“Tribunal de Justiça de São Paulo
…
Alegação, nos embargos da ocorrência de vício do consentimento, eis que o imóvel locado está sujeito a enchentes, fato omitido do locatário quando da contratação – Afastamento – Inexistência de dolo por parte do locador quando da avença – A pessoa que pretende alugar um imóvel deve verificar todas as condições de uso e localização.”
Todavia, importante salientar que também há o entendimento no sentido de que se o locador não deixar o locatário devidamente ciente dessa circunstância essencial para o contrato, o locatário poderá postular a anulação de negócio jurídico com restituição de valores e indenização pelos danos materiais e morais.
Veja-se a seguinte decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, parcialmente transcritas a seguir:
“Alegação de que a enchente que invadiu o imóvel é caso fortuito que exclui sua responsabilidade. Desacolhimento. Evento danoso previsível. Imóvel locado que se mostrava impróprio ao uso a que se destinava, tendo em vista a sua vulnerabilidade a enchentes. Locadora que não deixou clara circunstância essencial inalterada. Sentença mantida. Recurso desprovido.”
Muitas vezes, dependendo da situação concreta, é melhor para os locatários e locadores tentarem uma negociação, chegarem a um acordo, para que a locação possa prosseguir sem se tornar um contrato onerosamente excessivo para uma das partes, ou até para que o contrato possa terminar da forma mais justa possível.
Quando esse acordo não tiver sucesso de forma extrajudicial, uma possibilidade é pedir socorro para o judiciário. Estas ações podem ser baseadas na teoria da imprevisão, quando a parte prejudicada deverá demonstrar o desequilíbrio ocorrido, sem que decorra por sua culpa, e então pedir a revisão ou o término do contrato, e também com fundamento na teoria da imprevisão, quando a parte deverá demonstrar que a onerosidade excessiva é decorrência de fato superveniente extraordinário e imprevisível.
Um outro aspecto que pode gerar muita discussão e dúvidas é saber se houve a previsibilidade ou não dos eventos danosos, qual a extensão dos danos, até que ponto eles deixaram os imóveis imprestáveis para os fins que se destinam, quais são os valores das indenizações cabíveis? Essas avaliações são difíceis, as circunstâncias variam de imóvel para imóvel, e podem atingir cada pessoa de um modo bem diverso. Há espaço para muita subjetividade por parte dos contratantes, avaliadores, engenheiros e julgadores, e com certeza isso dará muito trabalho para os advogados e juízes.
Foto da Capa: Rafa Neddermeyer /Agência Brasil
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