Esses tempos participei de uma noite de um buffet de sopas de um grupo de escoteiros no salão de uma igreja luterana em um bairro nobre de Porto Alegre. Para minha completa surpresa, os jovens escoteiros que tiraram os pratos jogavam tudo junto dentro de uma grande lixeira. Restos de sopa, latinhas de alumínio, copos, garrafinhas d’água, guardanapos, garrafas de vinho, tudo misturado. Eu fiquei em estado de choque.
Falei com uma das moças que estava limpando as mesas: “Vocês não fazem separação dos resíduos?” Ela ignorou minha pergunta. Na saída, eu falei para uma pessoa da organização o quanto essa situação era inadmissível, ainda mais em um grupo de escoteiros. Como pode, em pleno século XXI um grupo que tem como preceito disseminar educação e cidadania não se preocupar com a reciclagem, com as milhares de pessoas sobrevivendo da venda de recicláveis numa cidade como Porto Alegre?
A questão dos resíduos para muitos é um tema invisível. Tem gente que ainda acha que o negócio é simplesmente tirar o que não quer mais da sua frente, que o problema não é seu. Deixar na calçada, na frente do contêiner, em terrenos baldios aquilo que não se quer mais é prática comum na nossa cidade. É um assunto que rende muitos desdobramentos. Hoje, talvez, “nunca antes da história desse País”, parafraseando uma certa liderança, os resíduos nunca foram tão valorizados e, ao mesmo tempo, tão onerosos aos contribuintes, aos cofres públicos.
Como esse tema é algo muito vivo no meu cotidiano, desde minha casa no interior eu cresci separando resíduos – os restos de comida iam para as galinhas, o que elas não comiam ia para horta e muito pouco ia para o caminhão de lixo – e meu pai reaproveitava, reinventava usos e reutilizava tudo que era possível, venho procurando disseminar práticas, provocar debates e também ações de conscientização de quem está ao meu alcance.
Quando ouço o barulho ensurdecedor de garrafas de vidro que são viradas de contêineres para o caminhão de rejeitos fico extremamente incomodada (vale lembrar que o vidro pode ser eternamente reciclado). Quando me deparo com bueiros entupidos por sacolinhas de plástico ou garrafas, me revira o estômago. Quando caminho pelas calçadas e vejo um monte de resíduos espalhados e encontro catadores informais dentro de contêineres, então, nem se fala.
E, ainda, graças a essas pessoas que não vão mais recicláveis para os caminhões que pegam a estrada rumo ao aterro sanitário em Minas do Leão. Isso quer dizer que esses caras que retiram o que pode ser vendido prestam um serviço para nós, pois, se não fossem eles, haveria muito mais resíduo sendo encaminhado para o aterro. São mais de uma centena de caçambas com nove toneladas que pegam a BR290 todos os dias com resíduos, que deveriam ser só rejeitos. O aterro fica a cerca de 100km da Capital. Dá para imaginar quantas emissões de Gases de Efeito Estufa (GEEs) são lançadas todos os dias porque não se tem mais lugar para colocar o que ninguém quer (ou que a Prefeitura não conseguiu que fossem reaproveitados ou reciclados)?
Só que no momento, além de todos nós pagarmos em vários sentidos não só financeiros (a saber: depois de saúde e educação, o maior gasto da prefeitura de POA é com limpeza, gerenciamento de resíduos) hoje o pessoal das Unidades de Triagem, que separa o material para ser reciclado não está conseguindo comercializar determinadas matérias-primas, como o BOPP (sigla em inglês para bioxially oriented polypropylene, que em português significa polipropileno biorientado), um tipo de plástico encontrado em embalagens de salgadinhos, biscoitos, barrinhas de cereal, batata palha. É um dos materiais mais empregados para embalagens, aquelas coloridas por fora e laminadas por dentro. Há outros plásticos, que tem em sua composição mais de uma resina plástica (aqueles que têm o número 7 impresso), entre outros componentes, usados para embalar queijos, carnes e sachês, esses de material de limpeza, que também não estão sendo aceitos por atravessadores para a comercialização da reciclagem.
Por questões de mercado, atualmente, Porto Alegre hoje recicla apenas uma parte do que separamos. E tudo isso impacta em vários lados da nossa vida, desde o aumento de caminhões com rejeito nas estradas, o aumento de emissões de gases, a sujeira nas ruas, os alagamentos por sujeira nos dutos, até a diminuição da renda dos catadores das UTs, que somente recebem aquilo que conseguem vender.
Acompanho como consigo esse contexto observando o que condomínios, empresas, pessoas fazem na sua rotina e também no grupo, chamado de spin dos resíduos do coletivo POA Inquieta, do qual sou uma das articuladoras. Para quem acredita que o mercado resolve tudo, informo que hoje desperdiçamos uma avassaladora montanha de matérias-primas porque o Rio Grande do Sul não dispõe de indústrias que reciclem, como há em São Paulo ou outros estados. Muitas vezes é mais barato – para a indústria, é claro – comprar material virgem. Não é computado o custo, o ônus que fica para o poder público em ter que “dar um jeito” nos resíduos que não são reciclados.
Não há campanhas de educação ambiental, e parece que não há interesse na prefeitura (não só em Porto Alegre, mas em boa parte dos municípios) em estimular a correta separação e o encaminhamento à reciclagem. E para agravar ainda mais esse contexto, a cada dia a indústria coloca nas prateleiras dos supermercados novas embalagens, que são de difícil reciclabilidade, operação para se praticar a tal economia circular.
O filósofo Luc Ferry, que veio ao Brasil a convite do Fronteiras do Pensamento, revelou que no seu entendimento o problema da poluição provocada por plásticos nos oceanos é muito pior que o aquecimento global. Sua constatação é com base principalmente em suas viagens à China e países longe da Europa, onde a consciência ambiental é maior. Os microplásticos estão entrando na cadeia de vida dos ecossistemas e até o momento é um problema impossível de se reverter. O escritor, que tem dezenas de livros sobre como encararmos o desenvolvimento na era do Antropoceno, acredita que a economia circular e a preservação da natureza podem contribuir para a sobrevivência do Homo Sapiens.
Enquanto observo, escuto e sinto que os resíduos representam a ponta do iceberg nos nossos problemas contemporâneos (até porque a geração de produtos, o aumento do consumo, a criação de coisas oriundas do petróleo tem íntima relação com as mudanças climáticas), lhe pergunto: já parou para pensar no seu poder de consumidor em exigir das indústrias, dos candidatos, dos governos atitudes firmes que considerem uma vida digna às futuras gerações? Alguém já perguntou ao gerente do supermercado o que fazer com as suas embalagens? Se anos atrás nem pensávamos em recolhimento de lâmpadas fluorescentes, por que hoje não pressionamos a indústria a se preocupar com o resíduo que geram e que deixam para os consumidores e o poder público resolverem?