Trabalho com texto há três décadas. Acho que escrevo com alguma clareza e cometo poucos erros (quase nunca crassos) de ortografia, gramática e sintaxe, menos por conhecimento das regras e mais pelas constantes leituras e a prática profissional. Isso faz com que a forma como se usa o idioma me chame mais a atenção do que seria saudável para a minha inteligência emocional – e a agenda apertada.
Quando o Twitter ainda aceitava apenas 120 caracteres (e tudo mato por lá), cheguei ao ponto de criar a hashtag #implicanciaimplicante (que nunca chegou nem perto de viralizar, tanto que praticamente só existem posts meus com ela até hoje). A maioria dos posts marcados assim, não por acaso, versa sobre crimes e mesmo pequenas e quase perdoáveis contravenções que cometemos contra a flor do lácio (e me deixam passada). As implicâncias vão do uso de neologismos desnecessários e sem criatividade, anglicismos equivocados e clichês a erros desavergonhados cometidos por quem deveria saber.
Essa ranzinzice nas redes (que começou no finado blog pessoal) me rendeu uma injusta fama de preconceituosa linguística. Injusta porque JAMAIS você vai me pegar debochando ou corrigindo em público erros cometidos por pessoas que eu sei que não tiveram acesso a educação básica de qualidade. Essas, aliás, eu admiro por conseguirem se exprimir por escrito da forma que seja e, em caso de pedido de socorro, sou a primeira a dar as dicas solicitadas – sempre em privado. Agora, se aparecer dando carteirada de doutor, mestre, professor ou simplesmente exibir uma postura caga-regra e errar uma crase, uma concordância ou fizer uma metáfora descabida, cuidado! O mesmo serve para quem usar termos em inglês para falar algo que tem um equivalente de igual qualidade ou melhor em português. Vai ter crítica aberta, sim!
A seguir, um compilado de resmungos que deixei por aí nos últimos 15 anos (e que seguem valendo):
- Não aguento mais ouvir falar em líderes, times, colaboradores, entregas e potência em contextos equivocados, só porque são termos que estão na moda.
- Aliás, dando uma passada no LinkedIn, descobri recentemente que mal haviam se transformado em times, as equipes agora são squads.
- Existe algo pior do que o uso desmedido (e tantas vezes equivocado) de “potente” e assemelhados. É a onipresença da expressão “libere o potencial” em textos de marketing digital. Os “copywriters”, que em neoportuguês significa “redator”, podiam ao menos editar o ChatGPT!
- Não é sobre preconceito linguístico. É sobre elegância mesmo. Se você tirar o “sobre” dessa construção, vai dizer a mesma coisa e vai parecer mais inteligente. Daí sim vai ficar tudo bem.
- Na absoluta maioria das vezes, você pode trocar o “é sobre” por simplesmente “é”. Faça o teste de deixe de falar e escrever como alguém mal traduzido.
- A coisa vai num jeito que daqui a pouco vai ter gente falando “atualmente” querendo dizer “na verdade” e a patrulha da “língua é viva” vai achar lindo…
- In the end of the day, basta a expressão “no fim do dia” aparecer em um texto escrito em português pra eu não conseguir continuar com a leitura.
- Você tem uma marca artesanal e autoral e se jacta de valorizar a matéria-prima brasileira. Daí você faz tigelas (ou cumbucas), mas vende BOWLS. Quer vender? Vende. Eu vou comprar? Não. Eu não vou comprar.
- Eu fico arrasada toda vez que vejo alguém traduzir devastated (no sentido de sentimento) como devastado. Qual o problema com o nosso tão usual “arrasado” ou o mais dramático “destruído”?
- Pessoa com curso superior que escreve calção quando quer se referir a caução. Não seja.
- Professora em comentário em site de jornal reclamando do salário escreve “idignados”, “tictes alimentação” e “previlegiados”. Professora.
- Estudos tirados da minha cabeça mostram que em 90% das vezes que alguém escreve “o qual” ou “a qual” ou “onde” em um texto, um erro crasso é cometido.
- Tem gente que escreve tão bem, que leio até bula de remédio. Por outro lado, tem gente que escreve tão mal que não consigo ler nem quando escreve sobre assunto que me interessa.
- Dizer que algo que está sendo cancelado está sendo “descontinuado” ou que a pessoa não está sendo demitida, mas “dispensada” ou, pior, “laid-off”. Muda o quê?
- Tem gente que poderia dar o curso “como escrever em 34 linhas o que poderia ser escrito em duas”. Pior é pensar que teria muitos interessados.
- Tentando decidir qual das duas frases finais de posts de “influêncers” me irrita mais: “Faz sentido pra você?” ou “Vale a reflexão”.
- Quer que eu pare de ler qualquer (eu disse qualquer) argumentação? Comece com a expressão “com todo respeito…” Alguma dúvida de que o que virá virá sem respeito algum?
- Vendo a previsão do tempo nos jornais da Globo, ficamos sabendo que o “Él Niño” provoca a “ex-tiagem”.
- Há de chegar o dia em que eu consiga levar a sério quem escreve coisas como amigxs, prezadxs e quetais (o comentário original eu fiz em 2015, e ainda não chegou o dia).
- Você já “experienciou” uma experiência hoje?
- Quando foi que “ingressos esgotados” virou “sold out de ingressos”?
- Toda vez que alguém elogia algo qualificando como sendo “de primeiro mundo”, eu fico desproporcionalmente irritada.
- Quantos anos você tinha quando descobriu que tem gente usando “assertivo” como sinônimo de “acertado”?
- Com todo respeito, não respeito quem usa “risco de morte” em vez de “risco de vida”.
- Não consigo deixar de sentir uma pequena náusea quando leio risadas “kkkkkkkk” escrito por pessoas por quem sinto apreço.
- Se você fala “legenda” quando quer dizer “lenda”, apenas pare.
- Sabe um verbo que substitui lindamente (e pode repetir quanto quiser) verbos como “afirmar” ou “assinalar”? Isso mesmo: “dizer”.
- Quando Nasceu, Onde Surgiu e do que Se Alimenta Entre os Escrevinhadores em Português Essa Nova Mania de Escrever Frases com as Palavras Começando com Letra Maiúscula, Como Se Fôssemos Americanos? (É uma pergunta retórica: foi no uso do ChatGPT.)
- No Carnaval de 2024, não bastava ser potente, era preciso ser ancestral…
- Tem textos que eu leio e me fazem pensar “caramba, será que um dia vou conseguir escrever tão bem assim?” Mas também tem os textos que eu leio e me fazem desesperar “meudeusdocéu será que eu escrevo tão mal assim?”
- 2024. E ainda tem gente que acha que escreve bonito porque usa palavras difíceis. Não consigo deixar de lembrar do episódio de Friends em que Joey escreve uma carta ininteligível usando apenas sinônimos tirados do Thesaurus.
- Pareço saber ortografia, mas sempre preciso olhar no dicionário antes de escrever “chiste”, “coriza” e “tigela” (porque “berinjela”, afinal, é com jota).
- Gente que acha que pode escrever sem pontuação e mesmo sem lógica e que todo mundo vai entender de qualquer jeito né porque é assim na web ora
Apesar das minhas ranzinzices, não sou uma reacionária caquética que não entende que a língua é viva, que o uso a transforma – tanto que em vez de estarmos nos tratando como vossas mercês, felizmente usamos correntemente o “você” (e o “tu” aqui no sul). Meu desgosto em relação ao conceito defendido por alguns de que “tudo vale”, porém, tem a ver com o fato de não é porque a língua é viva que a gente precisa fazer um esforço ativo para adoecê-la ou (pior!) matá-la.
Para não ser (ao menos não voluntariamente) mais uma algoz do nosso precioso idioma, tampouco virar a mala que muda expressões consagradas por uma lógica cartesiana tosca – como empurrar goela abaixo dos falantes sandices obtusas como “risco de morte” no lugar “risco de vida” –, uso a melhor técnica que herdei do jornalismo: desconfiar sempre. Para me ajudar nisso, tenho um arsenal particular.
A palavra ficou esquisita? Dicionário! Minhas sugestões online são o Aulete Digital, o Priberam e o Volp. Achando que o termo escolhido não diz exatamente o que queres dizer? O Dicionário de Sinônimos é uma mão na roda. Não está satisfeito com a clareza do que escreveu? Dá uma olhada no site do Método Comunica Simples, que descobri lendo um post da fundadora Heloisa Fischer no LinkedIn e que me representa demais com o trabalho que realiza.
Na hora de dormir, antes da leitura para encerrar o dia, para alimentar o senso autocrítico e impedir a sensação de “sabe-tudo”, me valho do bárbaro Viva a língua brasileira, livro de 2016 do Sérgio Rodrigues. Devorado de uma só vez há quase 10 anos, o volume nunca mais saiu do meu criado-mudo (antes de me chamar de racista, leia o que o próprio escreveu a respeito aqui, pouco mais de um ano atrás). Eu o apelidei de “minutos de sabedoria da língua”. Com a credibilidade de quem estuda e versa sobre o tema há anos, Sérgio (que também escreve ficção como poucos) discorre e explica com bom humor mitos, patrulhas, polêmicas, modismos e equívocos que nos cercam.
E para não dizer que não falei sobre as muitas outras facetas do idioma, não apenas a escrita, vamos de Caetano – que há 13 anos completados esta semana estacionou o carro no Leblon! – para lembrar que, falando no dia a dia, (não em eventos ou situações que imploram por norma culta e formalidade, como no jornalismo, nas instituições acadêmicas, na política), a coisa muda de figura.
Língua
Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio
Sambódromo
Lusamérica
Latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas!
Cadê?
Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E (xeque-mate) explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier
Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
E Maria da Fé
E Arrigo Barnabé
Flor do Lácio
Sambódromo
Lusamérica
Latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Se você tem uma ideia incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo
Meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap
Chic-left com banana
Será que ele está no Pão de Açúcar?
Tá craude brô
Você e tu
Lhe amo
Qué queu te faço, nego?
Bote ligeiro!
Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
Ó Tavinho, põe esta camisola pra dentro
Assim mais pareces um espantalho!
I like to spend some time in Mozambique
Arigatô, arigatô!
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem
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Foto da Capa: Freepik