Leituras estimulantes nos difíceis tempos da ditadura militar
E aqui faço mais uma imersão no período de proibições absurdas que vivemos e que gerou movimentos incríveis por uma comunicação libertária. Foi no final dos anos 1960, quando a censura no Brasil avançava sem freios – Ato Institucional número 5, fechamento do Congresso Nacional e predomínio de interesses antidemocráticos para assegurar a estabilidade da ditadura militar – que a imprensa alternativa germinou com força. Era evidente que naquele momento a chamada grande imprensa não teria condições de fazer um jornalismo independente, voltado para o livre arbítrio. As empresas bem sucedidas na época tornaram-se porta-vozes do governo e de grupos econômicos que defendiam um modelo de desenvolvimento ancorado no poder a qualquer custo. Para garantir a postura ideológica autoritária, comprometida com o capitalismo financeiro internacional, os generais que comandavam o país reduziram drasticamente a participação popular nos rumos da Nação.
Vivíamos um momento tenso gerado pelo golpe militar de 1964
Ou todos se entregariam e trabalhariam quietos sob as ordens dos que detinham o poder, renunciando à diversidade de ideias e posições políticas. Ou descobririam uma maneira de manter acesa a chama da liberdade, contestando e mostrando outras faces do País. Uma visão não atrelada à ditadura e ao poder econômico, com foco nas relações democráticas e na capacidade do povo de reagir, mostrar sua vontade e o direito de saber o que acontecia nos porões de um regime que torturava, matava e aliciava a população com a farsa de um milagre que nunca houve.
Sem esperança no jornalismo das grandes corporações, um grupo de profissionais que acreditava que a tarefa da imprensa não é meramente contar o que se passa, mas investigar, apontar erros e acertos, contribuir com a mudança, reuniu-se em torno da ideia de criar meios alternativos. Um jornalismo ciente de que o compromisso maior é com a transparência e com a análise ampla dos fatos. Queriam trabalhar com independência, sem as pressões políticas e econômicas que, através de uma censura progressiva, asfixiava a imprensa, tornando-a refém de interesses que não eram os interesses da maioria. Um governo que reprimia e torturava em nome de uma política que entregava o País ao capital estrangeiro. A maioria das empresas jornalísticas acomodou-se nesta situação para seguir e se manter economicamente.
Aqueles que defendiam uma posição diferente por acreditar que o papel da imprensa não poderia estar dissociado dos interesses da comunidade e da liberdade de expressão, para pensar com clareza e ter outros pontos de vista, optaram por caminhos difíceis. Lutavam contra a censura que impedia a divulgação e a denúncia da violação dos direitos humanos, em qualquer área.
Para este grupo de jornalistas, que foi ganhando adeptos, ocultar responsáveis por desmandos e arbitrariedades era o mesmo que incentivar a corrupção, a exploração econômica, a prepotência, institucionalizando, assim, a impunidade. Eles buscavam trabalhar coletivamente em veículos onde o comando fosse diluído entre muitas pessoas e onde as ideias pudessem ser discutidas democraticamente. Não queriam vender a sua força de trabalho para um órgão que se convertia em instrumento do poder político e econômico, em detrimento da informação, mesmo sabendo que a imprensa dependia principalmente de duas fontes de receita, a venda em bancas e a publicidade, esta última responsável por mais de 80% da receita. Os grupos que optaram por fazer um jornalismo alternativo enfrentaram pressões enormes, mas a experiência mostrou que a cobertura e a análise dos fatos com independência manteve acesa a chama da democracia.
Driblar a repressão era o caminho necessário, mas nada ameno.
Entre as iniciativas que marcaram época no Brasil do final dos anos 1960 e 1970 está, portanto, a chamada Imprensa Alternativa, ou “Nanica”, como também era conhecida. Falava de política, de economia, de comportamento, de arte, dos mais variados e instigantes assuntos, de um jeito irreverente, com uma linguagem nova, às vezes simbólica, buscando driblar a repressão. O caminho escolhido pelos independentes, que atuavam à margem, noticiando e comentando o que a imprensa oficial não abordava por pressões bem definidas, nunca foi ameno.
Frequentemente a censura baixava recolhendo edições inteiras de jornais e revistas
O marco mais significativo do movimento foi o Pasquim, jornal que surgiu no final da década de 1960. Os redatores e desenhistas principais (Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Ziraldo, Henfil, Millôr, Paulo Francis) eram os timoneiros da empresa. Depois vieram Opinião, Movimento, Versus, Em Tempo, Politika, Ex, Bondinho, Repórter, Coojornal/Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, o Lampião da Esquina que trazia a voz dos homossexuais e circulou entre 1978 e 1981, entre outros. Faziam um jornalismo desafiador que sublinhou uma década. Promoviam a resistência cultural e estimulavam as vozes dissonantes nos anos mais cruéis da ditadura militar, que torturava e matava sem escrúpulos. E assim conquistaram significativas vitórias na luta pela liberdade de expressão no país.
O objetivo da imprensa alternativa não era concorrer com a grande mídia, mas oferecer outras opções de leitura e manter a independência, sustentada pelas vendas em bancas ou assinaturas. O objetivo não era competir com veículos tradicionais em quantidade de informação, mas competir em qualidade, com um bom espaço a conquistar, fazendo um jornalismo analítico e opinativo. É importante lembrar que, mesmo não atingindo um grande número de pessoas, esses jornais eram guias seguros que interpretavam os acontecimentos do país, a partir de um ponto de vista popular e democrático. Suas características eram a ousadia, a irreverência, o desafio, o humor e a intensidade com que tratavam assuntos que não chegavam ao grande público.
Mudanças no campo político apontaram outros caminhos para a imprensa independente
Com a abertura política a partir dos anos 1980, através da distensão e da democracia relativa proposta pelo ditador Ernesto Geisel, a imprensa alternativa enfrentou momentos de crise e debilidade. A grande imprensa arriscou alguns passos mais à esquerda, buscando, com as mudanças em curso, atender à expectativa de uma larga faixa do público de oposição. Veículos que nunca se posicionaram claramente durante a ditadura tornaram-se mais flexíveis depois da abertura. Foi o caso do jornal Folha de São Paulo e da Isto É, revista que nos seus primeiros tempos firmou-se como veículo de oposição no mercado, em contraposição à revista Veja, francamente de direita. Certos assuntos, antes proibidos, deixaram de ser incompatíveis com a linha editorial de grandes jornais e revistas que passaram a publicá-los quase que diariamente.
Tais mudanças fizeram com que a imprensa independente buscasse outros caminhos. Passou a se manifestar de outras maneiras, já não mais no papel de resistência. Os espaços existiam e precisavam ser ocupados. Alguns jornais definiram-se como de tendência (Versus tornou-se porta-voz da Convergência Socialista. Em Tempo, do PT). Outros tentaram manter uma perspectiva frentista (como o jornal Denúncia, que surgiu em 1982). A tônica não deixou de ser a análise e a discussão abrangente dos problemas políticos, econômicos, sindicais, sociais, comunitários, culturais, só que dirigida a públicos mais específicos. Alguns jornais desapareceram e outros surgiram trazendo ideias e propostas de muitas correntes políticas, buscando contribuir para o aprofundamento do debate, do qual o povo estava afastado há muito tempo.
Uma produção de resistência, criação e integridade nos duros anos da repressão
A maioria dos jornais que formaram a resistência da imprensa brasileira, entre 1964 e 1980, enfrentou toda sorte de boicote e censura. A história dos alternativos é a história da política brasileira, marcada pelos duros anos de repressão. A transformação veio através da busca de outras faixas de leitores, preocupados com outros problemas. Jornais de sindicatos, minorias, associações de bairros, ecologia, entidades diversas, que circulavam com o objetivo de reunir categorias em torno de causas comuns, levantando questões que os jornais de grande tiragem continuavam ignorando.
A reflexão sobre a produção cultural brasileira na época da ditadura mostra a opressão sobre as atividades intelectuais e artísticas. Impossibilitados de frequentar abertamente a cena cultural e política, jornalistas, produtores, artistas, músicos, escritores, poetas passaram a agir na clandestinidade, usavam linguagens cifradas e cheia de símbolos, o que resultou numa rica e expressiva produção e criação de resistência e integridade, mantendo vivas tanto a consciência como a garra, a lucidez e a emoção do povo brasileiro.
(Texto escrito em 23 de setembro de 1986, época em que eu trabalhava na Rádio Pampa/Rede Riograndense de Emissoras Ltda e produzia um programa diário de duas horas, apresentado por Tânia Carvalho. Meu desejo foi resgatar um tempo que poucos conheciam e precisávamos tornar público. Fiquei na rádio de 01/12/1984 a 12/01/1987).
Foto da Capa: reprodução da Internet
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