Uma das melhores coisas já escritas nas últimas décadas sobre a ascensão do nazismo na Alemanha durante os anos 1930 é a monumental série em quadrinhos Berlim, do artista Jason Lutes. Publicada ao longo de uma década em capítulos, ela hoje pode ser encontrada em um único volume que ganhou tradução aqui no Brasil faz um par de anos pela Editora Veneta. A narrativa acompanha uma série de personagens gravitando pela Berlim ainda traumatizada pela derrota na I Guerra, testemunhando, participando e sendo afetados por choques ideológicos entre o comunismo e o emergente nazismo, disputando corações e mentes em meio a uma República de Weimar em crise política e com um governo que dirige seus laivos de repressão autoritária, como muitas vezes aconteceu na História, para o lado errado. Enquanto o Estado e a polícia reprimem violentamente os comunistas, vão abrindo caminho para a ideologia nazista liderada por alguns oportunistas e imposta na marra por um punhado de brutamontes.
Dois dos principais personagens se conhecem numa viagem de trem logo nas primeiras páginas, a jovem Marthe Müller e o jornalista de meia-idade Kurt Severing. O ano é 1928, Marthe está se mudando de Colônia para a capital para perseguir uma formação como artista. Severing é um jornalista algo cansado com uma visão de mundo pessimista que está voltando de uma viagem a trabalho. Ambos conversam e se separam no burburinho das grandes avenidas lotadas de transeuntes, de máquinas barulhentas e de veteranos de guerra mutilados que mendigam quase invisíveis, já naturalizados pela insensibilidade geral – Marthe, vinda de uma cidade menor, é a única que se choca com a visão de ex-soldados abandonados à própria sorte. A partir dali, Marthe e Severing seguem rumos diferentes até voltarem a se reunir lá pela metade da história.
A narrativa não se concentra apenas nos dois, ela se expande para englobar um panorama multifacetado do avanço do nazismo do fim da I Guerra até meados de 1932, quando a ascensão naquele momento já inevitável de Hitler leva todos os personagens que acompanhamos a fazer uma tomada de posição. A história também enfoca alguns colegas de Marthe no mundo acadêmico, em especial Anna Lencke, vista por todos como mulher, mas que na verdade é o que na época ainda não se chamaria de homem trans. Também segue Pola, uma dançarina de cabaré que se envolve a certa altura com um dos americanos negros músicos de jazz que estão em turnê por Berlim na mesma época. Ou Margarethe, amiga e ex-amante de Severing, de quem começa a divergir à medida que as visões de mundo de ambos se tornam inconciliáveis.
Há também espaço para duas famílias: a dos alemães Oscar e Gudrun, ele, um veterano de guerra e raivoso antissemita, ela, uma operária que vai desenvolvendo consciência de classe e abandona o marido. O filho fica com ele, e Gudrun leva as duas filhas – a mais velha, Silvia, terá papel importante à medida que a narrativa avança. E há também os Schwarz, uma família judia na qual o adolescente Davi vende jornais comunistas, numa militância que entra em choque com o tradicionalismo de seu pai, dono de uma loja de antiguidades.
Ficção x real
Passeiam pelas páginas também personagens reais, como o próprio Hitler, o chanceler Hindenburg, Goebbels, Josephine Baker, o brucutu marginal tornado mártir pela propaganda nazista Horst Wessel e o jornalista Carl von Ossietzky, chefe e editor do fictício Severing no jornal Weltbühne, seminário que existiu de fato. Na vida real, ainda antes de a ascensão dos nazistas ao poder estar completa, Ossietzky foi condenado a 18 meses de prisão por traição devido à publicação dessa reportagem que vazava “segredos oficiais” – mesmo que o segredo oficial fosse uma operação ilegal e nem fosse segredo de fato. Essa história, aliás, é também retratada nos quadrinhos, o que abre algumas janelas bastante inquietantes com o momento presente.
Nazistas e a imprensa
No início de 1933, momento próximo ao que a história de Berlim se interrompe, havia quase 5 mil jornais na Alemanha (a certa altura, a primeira cena que eu narrei no início desse texto, Severing diz à jovem e recém-chegada Marthe que cerca de 3 mil deles localizam-se em Berlim). Para usar uma comparação de lugar e tempo sem nada de muito especial, em 2018 havia, nos Estados Unidos, 1.279 jornais diários.
Os 5 mil jornais publicados na Alemanha dos anos 1930 atravessavam um largo espectro, e talvez a minoria deles fosse de jornais semelhantes aos periódicos de suposta neutralidade que se tornaram o modelo contemporâneo. As folhas impressas e distribuídas em Weimar muitas vezes eram produzidas por instituições e partidos políticos com visões ideológicas bem demarcadas. Ao contrário do que o seu magnata de mídia contemporâneo dirá, esse grande número de publicações abertamente vinculadas a uma visão de mundo era característico de um sistema livre, pluripartidário e democrático. Prestes a colapsar, quando Hitler, com o apoio da maioria nazista no Reichstag e passando por cima de um político idoso e sem capacidade, tornou-se o chanceler alemão, em janeiro de 1933. Pouco mais de um mês depois, o edifício do Reichstag pegou fogo.
Aproveitando o ataque para atiçar o medo do público, Hitler afirmou que o incêndio era um complô comunista para derrubar o governo alemão. Espalhou a “ameaça comunista iminente” por meio da mídia que existia no período: filmes, rádio e jornais. Mobilizando com isso uma população que há mais de uma década vivia em estado de ansiedade tanto pela situação econômica como política, Hitler patrolou também os hesitantes centristas no Reichstag, obrigando-os a unir-se a seus radicais na aprovação da Lei de Concessão de Plenos Poderes, que basicamente o transformou em um ditador capaz de legislar sem a chateação de lidar com um parlamento.
Na graphic novel Berlim, o motivo para aquela viagem inicial que faz Severing encontrar Marthe no trem é averiguar algumas informações obtidas por um colega: contrariando os acordos firmados em Versalhes ao fim da I Guerra, a Alemanha está reconstruindo sua força aérea e testando jatos militares. Uma informação que poderia ser apenas um elemento colateral jogado de passagem, mas que terá repercussões graves para o editor do jornal, como já mencionamos.
Hitler explorou a “mídia” de seu tempo para pavimentar sua ascensão ao poder, uma ascensão que 2/3 dos líderes alemães, mesmo aqueles também vinculados ao espectro da direita, pensavam ser um erro ou uma maluquice no momento mesmo em que acontecia. Tendo aperfeiçoado sua capacidade de provocar choque explorando as ansiedades do povo, mesmo as mais absurdas, Hitler, uma vez no poder, desmantelou a força de equilíbrio que representa uma imprensa livre porque ela não lhe convinha politicamente. Logo, a imprensa estava centralizada sob o domínio do Partido Nazista – e a maioria dos veículos de visões dissidentes havia sido fechada ou encampada. Para Goebbels, dramaturgo fracassado e braço direito do líder nazista (o quadrinho Berlim, aliás, flagra a transformação de Goebbels de um “gauleiter” pelo qual Hitler não tinha muita consideração no grande arquiteto das estratégias nazistas), Hitler entregou o Ministério do Reich para Esclarecimento Popular e Propaganda.
Direcionamento
Na qualidade de “Ministro da Propaganda” do Reich, Goebbels tinha poderes para direcionar e censurar a imprensa, a literatura, o cinema, a música alemãs — basicamente qualquer coisa que tivesse capacidade de influenciar a cultura. Aliás, veja só que coincidência, um dos discursos de “apresentação de diretrizes” feitos por Goebbels em 8 de maio de 1933 a administradores de cinema e diretores de teatro no hotel Kaiserhof, em Berlim, seria mais tarde reproduzido quase ipsis literis pelo então secretário nacional de Cultura do governo Bolsonaro em 2020, Roberto Alvim. Embora começasse dizendo que não tinha intenção de “restringir a criatividade dos artistas”, Goebbels, em seu discurso de 1933, logo se estendeu em ferozes críticas ao Expressionismo, movimento que apresentava uma visão mais subjetiva e emocional e que ele considerava arte degenerada.
Hitler também tomou controle de editoras que publicavam grandes jornais, como o órgão oficial do partido nazista, Völkischer Beobachter, de Munique, e o Illustrierter Beobachter, criando holdings de fachada para parecer que esses veículos totalmente favoráveis a suas ideias eram publicações de partidários independes. Ele e Goebbels fecharam publicações de oposição e assumiram o controle das editoras judaicas Ullstein e Mosse, duas das maiores da Europa na época, levando seus editores a fugir para o exílio. Em Berlim, Jason Lutes se refere a outro veículo fundamental para pavimentar a ascensão nazista: o jornal Der Angriff, fundado por Goebbels em 1927.
Em 1944, cerca de um quinto dos jornais que existiam na Alemanha em 1933 havia desaparecido. Aliás, parte da trama de O Crime do Bom Nazista, romance de meu amigo Samir Machado de Machado, aborda o quanto, antes da emergência dos nazistas, a indústria editorial alemã era de tal modo especializada e plural que havia muitas publicações voltadas aos públicos LGBT – e que seriam, claro, fechadas e perseguidas com Hitler no poder.
Estratégia política e mensagens diretas
O foco de Hitler na mídia e na cultura não foi casual. Como ele mesmo diz no seu livro-programa, aquele mesmo que eu acho melhor não declinar o nome, mas vocês conhecem.
“A receptividade das grandes massas é muito limitada, e sua inteligência, pequena. O poder do esquecimento é enorme. Em consequência desses fatos, toda a propaganda eficaz deve se limitar a bem poucos tópicos e deve ser martelada como slogan até que o último membro do público compreenda.”
Quase cem anos depois da época retratada em Berlim, vemos um cenário que é ao mesmo tempo muito diverso e… desconcertantemente similar. A imprensa como se conhecia naquele período pulverizou-se com a entrada em cena das tecnologias digitais. Ainda há rádio e alguns jornais, arrastando seu caixão em um lento funeral enquanto cortejam mídias digitais em que adolescentes de 14 anos não mais vendem jornais, mas monetizam dancinhas e memes. O rádio segue firme e expandiu-se para o domínio eletrônico, com essa moda dos podcasts que vendem-se como uma “nova mídia” por motivos de marketing que compra quem quer. Muito da informação que circula hoje é veiculada não mais na mídia tradicional, e sim nas “redes” – cujos donos, vimos todos, estavam todos perfilados na posse de determinado político americano que faz cosplay de Doritos.
Não apenas Trump, mas outras figuras da extrema direita em ascensão pelo mundo incluem hoje nos seus discursos, sem meias-palavras, ameaças de ampliar leis de difamação ou de minar a capacidade dos meios de comunicação de fiscalizarem políticos eleitos. Aliás, não deixa de estar aí parte da batalha contemporânea de figuras da extrema direita com a Wikipedia. Curiosamente, no hoje infame e famoso discurso no qual dobrou a espinha para a nova Ordem, o dono da Meta dizia que agências de checagem haviam “ido longe demais” e que a partir de agora suas redes contariam com uma forma de mediação mais “democrática”, a das “notas de comunidade”. Essa “democracia da massa digital”, contudo, não agrada ao mesmo campo quando se fala da Wikipedia e seu exército de editores voluntários (alguns realmente uns chatos de galocha, de fato).
Perdidos que estávamos em festas de revival dos anos 80, talvez não tenhamos percebido que o que estamos revivendo são os anos 20 – do século passado.
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Ilustração de Jason Lutes