O canavial (que não dá sombra) se estende a perder de vista. No corte da cana, as casacas grossas protegem do talho da palha, sob o sol que escalda por suor os corpos na limpa.
O agrupado de crianças, mulheres e homens, ao fim da jornada, se apinha embaixo das mangueiras e oitizeiros ao lado da sede do engenho. A paga será em mais oito dias, contudo, ali era o ponto de saída e de chegada.
A imensidão uniforme dos campos do latifúndio, vez por outra, era acarinhada pelo vento quente que vinha do Leste. Sopro que, correndo ligeiro pela falta de mata que lhe maneirasse o voo e lhe esfriasse a substância, batia no escritório como um bafo da caldeira.
Certo dia, o suspiro morno chegou às narinas de Luiz como um cheiro de fossa, coisa que nunca havia acontecido. Incomodado, seu primeiro impulso foi o de acusar o eflúvio das peles e dos corpos em descanso. Ele era quem acompanhava seu pai aos ofícios, desde menino. Era o primogênito da prole reconhecida. Os cheiros e sons da lida na lavoura e no engenho eram o berço de seu olfato e audição.
Mas, nesse dia, o hálito do vento fedeu: bateu em suas narinas como um sobressalto.
Quase enguiando devido ao fétido, segue, como de costume, ao final da jornada, à checagem (e apreço) do partido colhido. Todavia, dessa vez, ao passar pelos obreiros, apressa o passo, acreditando poder escapar da fedentina que o perseguia. Afastou-se mais do que de costume das anchas sombras de arvoredo que acolhiam os cortadores, no entanto, o sopro pútrido ainda o rodeava.
Esperou que os trabalhadores sumissem no rumo de suas moradas, na esperança de confortar seu faro. Porém, o fedor mesmo assim continuou a persegui-lo.
Caçando o que poderia ser a origem de seu desconforto, chama o encarregado (alguns capatazes também acorrem) e se dirigem à barragem, seguindo o curso do riacho até as imediações da usina próxima: talvez um grande despejo de vinhoto seja a causa da catinga que inundou suas ventas. Todavia, seguem rio abaixo, rio acima, vão às proximidades de outras duas moendas e nada de anormal: como sempre, há caudalosos restos de mosto empastelando mortalmente ribeirões e córregos, contudo, nada do que já não fosse habitual.
O périplo investigativo avoluma-se em indignação e ansiedade quando percebe que, só ele, realmente, parecia sentir a intensidade daquele bafio. Ninguém além dele dizia, com convicção, estar sentindo aquele odor estrambólico. Se deu conta de que os ajudantes da busca se engajaram na procura mais por medo do que por estarem sentindo, realmente, um possível molesto.
Todavia, homem prático que era, não quis dissuadir o medo. Pois, o tinha como mais do que um eficiente instrumento de gerenciamento: o tinha como a finalidade mesma de seu senhorio. Sabia que aqueles ali nunca deixariam de afiançar qualquer coisa que ele insistisse em asseverar como real.
Desgostoso por não ter tido resultado na pesquisa, dispensa os ajudantes e manda recado à esposa de que não voltaria para o domicílio: fazia dias que não visitava a mulher que instalara ao fim do caminho que partia dali.
Antes da metade do destino, sem ainda avistar o lugar da outra, continuamente encalçado pela emanação, acossa o cavalo e apressa o galope. Porém, quanto mais fugia, mais o bafo fedorento ardia. A inhaca o desvia da rota dos seus prazeres, conduzindo-o à trilha que pouco usava. Enfim, chega à altura do lajedo da curva do rio, terreno de muita pedra, que não servia nem para roça nem para pasto: empestado de mato seco e espinho.
Lá, a fedentina o puxa para cima das pedras e o faz atravessar a espinharia sem dó do cavalo.
Não precisou descer da montaria para (mãos tampando as narinas) ver monturo de terra revolvida e defunto exposto; resultante do remexer de uma ninhada de tatupeba, bicho que come carniça e que não teve muito esforço para escavar cova rasa: o buraco que foi possível fazer em chão magro. Pois, para não atrair muita suspeita, o corpo foi enterrado nas bordas da pedreira: em chão de pedras, sem serventia para lavra ou capim, não haveria perigo nem de gente nem de gado escavacar por lá.
Visto que não fazia quinze dias que um dos trabalhadores que se atrevera a cobrar dele justo dinheiro recebera a paga: desaparece quando voltava para casa, depois de acertar direitos com Luiz, no terreiro do escritório.
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Foto da Capa: Elza Fiuza / Agência Brasil