Os indultos natalinos, que nada mais são do que um perdão coletivo, outorgado pelo Presidente da República, para as pessoas que se enquadrarem nos critérios estabelecidos no decreto que os concederem, continuam dando o que falar e a dar muito trabalho para o Supremo Tribunal Federal (STF). Quem não se lembra do indulto concedido pelo presidente Temer, em 2017, que beneficiou criminosos do colarinho branco, o pessoal envolvido nos crimes da Lava Jato?
Naquela época, a Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, requereu uma liminar para suspender o decreto que concedia o indulto natalino e sustentou inclusive que “O chefe do Poder Executivo não tem o poder ilimitado de conceder indulto”.
Em que pese os brilhantes argumentos da Procuradora Geral da República, em maio de 2019, foi confirmado pelo STF o indulto concedido pelo presidente Temer. Vale salientar que, na ocasião, por maioria de 7 a 4, o STF entendeu que indulto de Natal é ato privativo do Presidente da República, e então foi declarada a constitucionalidade do referido decreto, e a improcedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), movida pela então Procuradora Geral da República.
Pois bem, na data em que escrevo este artigo, 27 de dezembro de 2022, o indulto de Natal concedido pelo presidente Jair Bolsonaro também foi assunto dos principais jornais brasileiros, que informam que o atual Procurador Geral da República (PGR), Augusto Aras, ajuizou uma ADI com pedido de medida cautelar que visa declarar a inconstitucionalidade do Decreto que beneficiou, dentre outras pessoas, os policiais condenados pelo Massacre do Carandiru, ocorrido em 1992, quando 111 presos foram assassinados, e condenados 74 policiais militares por homicídio qualificado com penas variando de 96 a 624 anos de pena privativa de liberdade.
Em síntese, o PGR alega que:
- O art.6º, caput e parágrafo único, do Decreto 11.302/2022, concede indulto natalino “aos agentes públicos que integram os órgãos de segurança pública de que trata o art. 144 da Constituição e que, no exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de trinta anos, contados da data da publicação deste Decreto, e não considerado hediondo no momento de sua prática”, também sendo aplicável “às pessoas que, no momento do fato, integravam os órgãos de segurança de que trata o art. 144 da Constituição, na qualidade de agentes públicos”.
- De acordo com com “O art. 7º, § 3º, do decreto presidencial afasta a exigência de que os crimes não tenham sido praticados mediante grave ameaça ou violência contra a pessoa para concessão do indulto natalino.”.
- Que nessa circunstâncias, “o indulto concedido abrange crimes cometidos por agentes públicos vinculados a órgãos de segurança pública, mesmo que praticados com violência ou grave ameaça contra a pessoa, desde que: (i) o fato tenha ocorrido há mais de 30 anos contados da data de publicação do decreto (ou seja, antes de 12.1992), (ii) o crime tenha sido praticado pelo agente de segurança pública no exercício de sua função ou em decorrência dela; e (iii) o crime não seja considerado hediondo no momento de sua prática.”.
- E que “As previsões normativas, nos termos em que formuladas, alcançam, ainda que não somente, os agentes públicos condenados no chamado Massacre do Carandiru (foto da capa).”.
Apesar de o PGR reconhecer na sua petição que a Constituição Federal confere ampla liberdade decisória ao Presidente da República para conceder o indulto natalino, ele destaca que “É pressuposto constitucional para a válida edição do ato que concede o indulto natalino a circunstância de não abranger o decreto presidencial que o formaliza os crimes de prática de tortura, de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos (art. 5º, XLIII, c/c art. 84, XII, da Constituição Federal).”.
De acordo com o ponto de vista sustentado pelo PGR pouco importa, se na data do cometimento do crime, os homicídios não se qualificavam pela hediondez, pois atualmente, na data de edição do decreto estão qualificados como “crime hediondo”.
Para fundamentar a sua petição, ele também transcreve vários julgados do STF, que deixam claro que “A aferição da natureza do crime, para a concessão do indulto, há de se fazer na data de edição do decreto presidencial respectivo, e não na do cometimento do delito.
Como se não bastasse, para evidenciar a inconstitucionalidade do Decreto que concedeu o indulto natalino, o PGR ainda ressalta os compromissos assumidos pelo Brasil no plano internacional, e que o adimplemento de tais obrigações decorre do art. 5º, §§ 1º e 2º; 4º, II, da Constituição Federal, e do art. 7ºdo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT à CF/1988.
Nesse sentido, ele menciona a adesão do Brasil à Convenção Americana de Direitos Humanos e o reconhecimento da jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que do mesmo modo que o indulto, são atos soberanos do Estado brasileiro, e que todo ato do Estado brasileiro deve se sujeitar ao controle de convencionalidade exercido pela jurisdição internacional.
Da mesma forma, o PGR enfatiza na ADI que “Os órgãos do Sistema Interamericano de Proteção a Direitos Humanos estabeleceram que a concessão indevida de benefícios na execução da pena pode resultar em uma forma de impunidade, especialmente quando se trata de graves violações a direitos humanos. O direito internacional proíbe a aplicação de indulto ou outras excludentes de punibilidade a pessoas que foram declaradas culpadas pela prática de crimes de lesa-humanidade.”.
Por todo o exposto, não consigo discordar do entendimento do PGR sobre o assunto, mas o direito é muito subjetivo, os aplicadores do direito e os advogados, com frequência interpretam as normas e enxergam as situações fáticas por diferentes ângulos. No “frigir dos ovos”, tudo dependerá de como o STF vier a interpretar o disposto nas normas do Decreto que concedeu o indulto natalino.
Espero que o STF seja célere, que quando esse texto for publicado, daqui a cinco dias, já tenha sido deferida a liminar requerida pelo PGR, pois há o grave risco de extinção da punibilidade de várias condenações que somam penas altíssimas, em razão da gravidade das condutas cometidas, por pessoas que merecem estar afastadas da sociedade. Ademais, o perdão concedido a esses condenados, além de violar o disposto na Constituição Federal, poderá inclusive gerar a responsabilização do Estado brasileiro pelas violações dos tratados internacionais de direitos humanos.
Desejo a todos, um feliz ano novo, e que a justiça no Brasil seja cada vez mais rápida, eficiente e certeira.