A minha geração finalmente chegou naquele momento da vida de ver a própria infância e adolescência tematizadas em documentários.
Mais ainda: as roupas que usávamos diariamente na nossa juventude agora estão novamente na moda. E podem ser encontradas em brechós, diga-se de passagem. As músicas que escutávamos (Humberto Gessinger fez 60 anos, meus caros!) agora são retrô, já estão nas playlists de época do Spotify.
Os Engenheiros do Havaí agora moram no Vale do Silício.
Estamos amadurecendo, o que não é de todo mal. Mas também corremos o risco de nos tornarmos nostálgicos, o que pode ser um perigo: a nostalgia, quando mal tratada, tende a cronificar em pensamento reacionário. Meu maior medo é começar frases com “A juventude de hoje em dia…” e seguir com algum apontamento pejorativo.
Tudo isso me veio à mente porque recentemente assisti ao documentário sobre a Xuxa na Globoplay. Xuxa que, assim com Gessinger, também fez 60 anos.
Apesar do tom por vezes indulgente, especialmente no último capítulo, foi fascinante acompanhar a história da rainha dos baixinhos. Mas o que inicialmente era curiosidade logo foi se transformando em uma sensação mista de surpresa e saudosismo.
À medida que iam passando os episódios, as imagens das várias fases da Xuxa foram trazendo à tona lembranças da minha própria infância. Inclusive, e especialmente, lembranças que talvez nunca tivessem retornado se não fosse o documentário.
Lembrei do dia fatídico em que Ayrton Senna morreu: eu estava assistindo à corrida na casa de um amigo no interior, na época em que eu ainda fingia que me importava com carros. Lembro de ter voltado pra casa a pé, muito triste, talvez mais contagiado pelo clima social do que necessariamente por alguma apego pessoal ao piloto.
Também recordei dos comerciais televisivos de venda de imóveis cujos garotos-propaganda eram a Xuxa e Pelé, seu namorado da época – ou “amizade colorida”, como a apresentadora chamava.
Fiquei estupefato que o incêndio no estúdio da Xuxa foi em 2001. Parecia ter sido há tanto mais tempo. E lembrei claramente da capa do jornal Zero Hora do dia seguinte, a foto da nave espacial em chamas e das crianças aterrorizadas correndo sem saber para onde ir.
O interessante disso tudo é ter tido a experiência de reconstruir a minha própria história a partir do documentário. Eu não estava em nenhuma daquelas imagens, óbvio, mas a tela da televisão me servia como um espelho apontado para o meu passado.
Até porque eu não fui uma criança muito filmada, nem mesmo fotografada. Meus pais nunca tiveram filmadora, e também não tinham lá tanto interesse em registrar em fotos os eventos importantes da minha vida. Resta, assim, a reconstrução pela palavra e pela narração.
O que me faz pensar, caro leitor, em como alguém que nasceu aí pelos anos 2010 contará a sua história.
Pensando aqui que o telefone que popularizou os smartphones, o iPhone, passou a ser vendido em 2007, podemos dizer que logo mais veremos uma geração toda atingindo a maioridade já tendo tido toda a sua vida documentada. Muitas vezes, desde o nascimento.
Para tudo, haverá o tira-teima da foto ou do vídeo: será que o Tio Fulano estava na festa de 5 anos? Na dúvida, basta ver no aplicativo de fotos do celular. Qual era mesmo a cor do vestido da primeira vez que nossa filha foi a uma festa junina? Fácil, tudo vai estar registrado.
Não sei o quanto isso será bom ou mau, mas arrisco a dizer que já estamos tendo alguns indícios do que significa viver uma vida sob o olhar das câmeras.
Por um lado, é ótimo que hoje em dia possamos guardar perto de nós filmagens e fotos da infância. Quem não gostaria, afinal, de revisitar não só a si mesmo, mas também o olhar que os pais tinham por si tempos atrás?
Entretanto, me parece que nem tudo é tão simples, especialmente porque não podemos deixar de levar em consideração que muitos destes registros acabam indo para as redes sociais, o que levanta questões éticas delicadas como, por exemplo, pelo direito ou não de os pais compartilharem imagens de seu filhos recém-nascidos.
De quem é o direto de imagem de uma criança de três ou quatro anos? Será que, anos depois, este filho não se sentirá exposto? Ou talvez estejamos já em uma época em que a imagem de alguém é quase um bem público, sendo praticamente impossível ter controle completo sobre o que é divulgado de nós?
De toda forma, algo bem peculiar já está se dando: a suposição de um protagonismo sempre presente. Nas redes, todos nos sentimos os personagens principais, o centro dos olhares. Somos nós que descemos da nave espacial. Há também a sensação de controle da narrativa de si, de edição da própria vida. Até porque, frente a uma câmera que pode estar apontada para nós, a nossa sensação é de que ela vai estar, o que acaba produzindo uma forma de relação com o outro bem típica dos nossos tempos, a de tomar o próximo como plateia do espetáculo íntimo.
Pensando nas gerações que já estão crescendo dentro da lógica da hiper-registro e da hiperexposição, não será de se estranhar se a forma privilegiada de presença no mundo seja a performance, a criação de um personagem de si tão bem construído que até se confunda com quem se é.
Mas para nós que nascemos antes dos smartphones, nos resta seguir viajando por esta infinita highway na direção de um futuro que nós dirá qual o nosso lugar no show em tempos de infâncias instagramáveis.