Nova habilidade que estou desenvolvendo: a fala. Pois é, a esta altura do campeonato, nos 40, estou aprendendo a falar. Não, não se trata de um novo idioma ou dialeto. Sei que pode parecer curioso, já que me dedico à escuta psicanalítica, mas a verdade é que não me sinto na posse das palavras, elas apenas passam por mim. Acredito que raras vezes possamos acessar algum que outro estado de plenitude e, uma vez que uma palavra se manifesta, certamente saímos dele.
Podemos até tentar, mas, na verdade, não somos como o ovo Humpty Dumpty — essa espécie de senhor das palavras que Lewis Carroll coloca em um estranho diálogo com Alice. De todos os modos, aí reside um tanto do segredo das práticas que envolvem letras e palavras: certa ruptura com as aparentes plenitudes. Nada de formas redondas ou ovaladas, cheias de si e em cima do muro, como Humpty Dumpty. É necessário aprender o idioma vigente, mas também é interessante aprender o idioma único de quem nos interpela. É um exercício largo, infinito, mas frutífero: deixar-se levar pelas palavras. Novas, velhas ou renovadas por novas bocas e plumas outras. Em todo o caso, tampouco se trata disso quando digo que estou aprendendo a falar.
As transformações sociais que queremos — sei que me arrisco com esse plural — nos impelem a reposicionar discursos. Isso passa pela forma, por se deixar afetar por essa condição um tanto infante, um tanto sem fala. A mobilidade das palavras está expressa quando lemos e adotamos, a partir de Carroll, o termo palavra-valise. Uma valise é algo que se carrega. Nesse sentido, está posto que uma palavra se mexe, vai para algum lugar. A palavra toma um sentido e vai, segue o seu rumo. Quase sempre é assim, exceto quando algum poema nos deixa na metade do caminho vacilando entre dois ou mais mundos. Ou ainda, quando do encontro com a arte de um Guimarães Rosa ou de um James Joyce. Deste último me ocorre o neologismo funferral, unindo funeral com fun for all (diversão para todo mundo). Este é um belo exemplo que nos deixa um tanto retidos na alfândega, indecisos entre o luto e a celebração.
Em dia com a lembrança de que não somos plenos e de que as palavras são móveis é que, cada vez mais, tenho me animado a assumir o uso de uma linguagem inclusiva e neutra — coisa que a juventude que me sucede faz “com a mão nas costas”, mas que ainda me custa um tanto. Entendo que, mais do que um exercício desapego, é também uma construção de novas musicalidades. Quando recém trouxe o exemplo de Joyce traduzi all como “todo mundo”. Este tipo de esforço se chama linguagem inclusiva, quer dizer, usar os recursos já disponíveis da língua para não discriminar e incluir minorias. Outra coisa, outra música, é traduzir all por todes. É muito mais econômico e afirmativo, mas requer generosidade dos ouvidos manhosos e resistentes — entre os quais estava o meu até pouco tempo.
Não por acaso, trago exemplos do idioma inglês — a língua de nossos colonizadores de preferência — justamente, porque se trata de um idioma muito mais neutro do que o português. Isto não quer dizer que esta neutralidade também não acarrete outros inconvenientes. Em algumas circunstâncias, me permito uma exacerbação que pode aqui servir de exemplo. Às vezes, dou lugar a uma espécie de sanha feminista que me faz querer converter tudo ao gênero feminino. Aí o inglês não me serviria para nada, pois a ideia é brincar de linguagem exclusiva com o feminino. Então, me divirto bastante ao compor frases inusitadas com a, ela, dela, aquela, daquela etc. É pensar na ideia da mulher como sinônimo de humanidade, é pensar nas seres humanas. O corretor ortográfico (este compêndio de algoritmos que certamente engoliu um macho) pira.
A infância faz esses e outros jogos sem dramas, brinca com as palavras como se fossem argila. As brincadeiras, contudo, devem ter seus limites: eu preciso parar se escuto um ai. Há muito não me reconheço sem procurar estar em dia com as pautas raciais, sobretudo indígenas e negras, além daquelas que envolvem as expressões de capacidade, gênero e sexualidade. Saber se uma fala expressa exclusão e preconceito é um exercício que beira a uma paranoia autogestionada. E nessa toada, de forma circular, se não nos cuidamos usamos uma nova roupagem de Humpty Dumpty: a do mestre militante. Até porque, há que se guardar energia para o corpo a corpo das lutas, quer dizer, mais vale não cair na armadilha do imperativo das formas. Elas são importantes, não há dúvidas, mas como parte do assunto. É na composição com as condutas que as palavras verdadeiramente ganham força.
Por fim, assumo aqui meu lugar de infante intermitente das palavras como uma ideia para melhor atravessar esses processos tão necessários de reposicionamentos linguísticos e discursivos. É como na canção de Guilherme Arantes, eternizada na voz de Elis, “vivendo e aprendendo a jogar: nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar”. Um jogo que não tem ponto final.
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