Não há dúvidas que a internet causou mudanças profundas na vida das pessoas, transformou as relações pessoais e com isso apresentou novos cenários para as relações conjugais. Assim sendo, iniciou-se um debate jurídico sobre a possibilidade de relacionamentos virtuais figurarem como infração ao dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges conforme consta no art. 1566 do Código Civil, dentre os deveres matrimoniais.
Para melhor analisar este pleito, faz-se necessário ter a clareza de alguns conceitos:
De acordo com o dicionário, fidelidade é “constância nos compromissos assumidos com outrem”. É característica do que é fiel, do que demonstra zelo, respeito, lealdade por alguém ou algo.” Portanto, a fidelidade antes de qualquer outra coisa, é o respeito para com o outro.
Já a infidelidade é definida como “falta de fidelidade; deslealdade; traição; falta de exatidão, de verdade. Perceba que pela definição, a infidelidade é também considerada como sinônimo de adultério.
Todavia, apesar da definição do dicionário, juridicamente é algo muito subjetivo, não existe uma definição legal de quais atos constituem a infidelidade.
Os danos morais são aqueles que afetam a personalidade, ofendem a moral e a dignidade da pessoa, são os danos resultantes da violação de um ou mais direitos da personalidade, seja pela violação do direito ao nome, à imagem, à privacidade, à honra, à boa fama, à dignidade.
Os danos existenciais, ainda pouco discutidos no direito e nos tribunais brasileiros, cuja conceituação surgiu na jurisprudência italiana se configuram pela lesão a direitos existenciais, e são ligados ao projeto de vida de cada pessoa, sejam na dimensão familiar, sexual, educacional, artística ou profissional, que sofrem alterações, lesões que impedem que o ofendido possa continuar a interagir no plano comunitário, do mesmo modo que fazia antes da ocorrência do dano, como ensina Filipe Albuquerque Matos, citado pela Professora e Advogada Karenina Carvalho Tito, no Livro Responsabilidade Civil e Novas Tecnologias, elaborado pelos Coordenadores Nelson Rosenvald e Guilherme Magalhães Martins, publicado, em 2020 pela Editora Foco.
Os tribunais vêm entendendo que sem prova robusta da ofensa à honra objetiva, isto é, à respeitabilidade que a pessoa tem no meio social, à sua imagem e reputação, enfim, ao modo como ele é visto no meio social, não há o dever de indenizar a vítima da infidelidade por danos morais. Para eles, a dor e a tristeza advinda de uma infidelidade não configuraria necessariamente uma lesão aos direitos da personalidade. Para o direito à indenização por danos morais, é preciso mais do que uma infidelidade, uma parte deve ter submetido a outra a uma situação humilhante, vexatória, ofendido sua honra, sua imagem, sua integridade, seja física ou psíquica. Entendo que para que haja o direito a indenização pelos danos existências, causados pela infidelidade, deveria ser aplicado o mesmo raciocínio.
Veja-se trecho desse julgamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal:
“II – A infidelidade de qualquer dos companheiros não implica, por si só, em causa de indenizar. Para se conceder o dano moral, faz-se preciso mais que um simples rompimento da relação amorosa; É necessário que um dos companheiros submeta o outro a condições humilhantes, vexatórias, ofendendo a sua honra, a sua imagem, a sua integridade física ou psíquica.”
Segundo acordão do Tribunal de Justiça de São Paulo, referente a julgamento que tratava de pedido de indenização por danos morais, fundada em ruptura de relacionamento e atos de infidelidade, “1. A ruptura de relacionamento amoroso, ainda que abrupta, não seja, por si só, a ocorrência de danos morais, tratando-se de circunstância ínsita à vida em sociedade. Ausente o dever de indenizar os danos morais alegados, sobretudo quando demonstrado que a recorrente já se reestruturou emocionalmente e financeiramente. 2. Não há dano moral a ser indenizado se a pessoa não demonstra que, em decorrência de ato de infidelidade, passou por situação vexatória ou humilhante perante o meio social no qual o casal estava inserido.”
Infidelidade virtual
Se o próprio conceito de infidelidade é algo subjetivo, o de infidelidade virtual é ainda mais difícil, pois o que aos olhos de uma pessoa pode ser uma simples manifestação de amizade, confiança, afeto ou carinho, um mero desabafo para um amigo, para a outra pode ser uma ato de infidelidade, de “traição” para ser bem dramático. Por exemplo, seria a infidelidade somente a conjunção carnal, ou haveria diversos outros atos que caracterizariam a infidelidade, como o cortejo, um beijo, um ato físico mais íntimo, uma declaração de amor verbal para um terceiro? Um pensamento libidinoso com relação a terceiro, seria um ato de infidelidade? Se a pessoa não for fiel “em pensamento”, também haverá infidelidade? Parece que não. Todavia, o conceito objetivo de infidelidade é muito difícil de se obter. Isso tem a ver com cada cultura, com a forma em que a sociedade é estruturada.
Só que as novas tecnologias estão aí, e as redes sociais e aplicativos para conhecer pessoas visando sexo, namoros ou casamentos, prosperam. Tem gente para todos os gostos, para todas as orientações sexuais, e os usuários podem selecionar potenciais parceiros por região, idade, orientação sexual, etc. E, além disso, as pessoas podem estar em qualquer lugar, até mesmo em casa, ao lado da pessoa amada, e sigilosamente se comunicarem e conhecerem outras pessoas, e desse modo marcarem encontros, discutirem suas vidas íntimas, suas vidas amorosas, falarem sobre sexo, fantasiarem, simularem relações sexuais, trocarem confidências, falarem mal dos seus cônjuges, etc. Talvez nem todas essas situações acima mencionadas possam efetivamente serem configuradas como infidelidade, mas muitas têm com certeza o poder de abalar qualquer relação amorosa, de deixar a outra pessoa arrasada, de causar até mesmo uma separação.
Pois bem, para as infidelidades virtuais, os tribunais também vêm aplicando o mesmo entendimento referente à infidelidade, ou seja, não haverá o dever de indenizar se a outra parte não for ridicularizada ou exposta dolosamente (intencionalmente).
Veja-se essa ementa de julgamento realizado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
“1. Não existe um conceito objetivo do que vem a configurar o ato de infidelidade, uma vez que se trata de viciosidade materializada a princípio apenas no campo psicológico do adúltero, e que pode se manifestar no mundo fenomênico sob diversas formas e graus de intensidade do contato com o (s) terceiro, ou mesmo se está configurado apenas pela projeção hipotética, imaginária e /ou virtual do cônjuge infiel. 3. A despeito da dubiedade acerca da forma ou momento no qual se consuma a violação do dever de fidelidade, com relação à questão controvertida, incide a responsabilidade na sua modalidade subjetiva, assentada nos artigos 186 e 927, caput do Código Civil, devendo a respectiva pretensão de indenização por dano moral ser interpretada à luz do elemento culpa (em seu sentido amplo), o que impõe a análise da intenção de um cônjuge em ridicularizar ou expor/lesar o outro.
Para os casos de infidelidade em que há alegação de relacionamento homossexual do cônjuge, se não houver prova cabal dos fatos alegados e nem a deliberada intenção de humilhar, de ofender a honra e o bem-estar psíquico do cônjuge ou companheiro, a infidelidade também não dará ensejo à indenização por dano moral, que se entende “não deflui unicamente da violação ao dever conjugal, e do sofrimento e frustração dela decorrentes, conforme entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em julgamento de apelação cível.
A responsabilidade do terceiro que participou da infidelidade
Já houve casos que a vítima da infidelidade processou a terceira pessoa envolvida, e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em uma ação em que se postulava indenização por danos morais, teve o entendimento de que cúmplice do cônjuge infiel não tem o dever de indenizar o cônjuge vítima da traição. Para tanto seria necessária a violação de um dever legal ou contratual do cúmplice perante o traído, mas o dever de fidelidade não o abrange, não se pode impor a pessoa estranha ao casamento um dever de não fazer.
A infidelidade virtual ainda é um assunto complexo e subjetivo, o qual pertence ao mundo contemporâneo. Todavia, punir o cônjuge infiel com indenizações pelo relacionamento virtual é permitir a vingança pela mágoa de ter sido traído, o que ao meu ver, não encontra respaldo jurídico salvo a possibilidade de dano moral objetivo, como acima explicado.
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