Qualquer iniciativa tem sempre por trás uma motivação, um desejo, uma vontade de fazer ou uma necessidade de manifestação. “É preciso ter força, ter raça, gana…, sonho…” canta Milton Nascimento.
É preciso ter ânimo. Alma disposta a fazer por instinto ou razão. É assim que as coisas acontecem.
Se iniciativas dependem essencialmente de indivíduos, quando orquestradas coletivamente geram forças e prazeres de dimensões de outra ordem, muitas vezes mágicas. Falo dessa sensação de comunhão que todo mundo já sentiu na realização de um trabalho, participando de um time esportivo ou então numa torcida, num show, comício ou templo. A atividade coletiva é prazerosa, mas, para acontecer, depende da iniciativa de indivíduos. São alguns deles que mobilizam os demais para que esse ganho de satisfação e prazer se realize.
As cidades deveriam ser — muitas são — o resultado de iniciativas que visam dar acolhimento e prazer coletivo aos seus cidadãos. Sua construção e manutenção saudável dependem de bons intérpretes de desejos nem sempre bem expressos. As pessoas querem se sentir seguras e representadas em seu lugar de morar; querem ver atendidas suas necessidades básicas e espirituais, mas nem sempre sabem dizer quais são. Como resolver esse problema?
A solução encontrada pela sociedade, para que essas aspirações sejam atendidas, foi delegar poder de representação e decisão a indivíduos que tenham espírito público. Que saibam interpretar, que tenham ânimo, vontade de responder a esse anseio de bem viver da população que o elegeu. Vou chamar essa tarefa de Iniciativa Pública em contraposição à Iniciativa Privada, que, como o nome diz, se move por interesses privados, individuais ou de associados ao mesmo propósito. Não lhe cabe o papel de construir e cuidar da cidade no sentido que estou falando aqui.
A Iniciativa Pública, pela sua importância coletiva, deveria ser considerada como a de mais alto prestígio social, mas, infelizmente, não é o que acontece. O que se vê são institutos endinheirados, grande mídia e até mesmo intelectuais tecendo loas não à Iniciativa Pública – coletiva –, mas à Privada – individual. E o fazem não só a favor do empreendedor – que sim, é importante – mas contra a administração pública, desvalorizando-a. Pior, propugnam pela extinção do estado em qualquer nível em favor do mercado, como se a cidade pudesse prescindir de um olhar voltado ao coletivo.
Isto tem feito com que muitos políticos ignorem seu papel de agentes da Iniciativa Pública, dedicando-se a transferir tarefas de sua alçada para a iniciativa privada. Vendem ou concedem patrimônio e serviços públicos a particulares, ganhando prestígio no ambiente ideológico dominante. É o que vem ocorrendo em Porto Alegre. Os gestores da coisa pública abriram mão do exercício a que foram nomeados: identificar e trabalhar para que as necessidades de uma vida digna, aprazível e confortável sejam atendidas. Ao contrário, trabalham para diminuir sua própria função repassando tudo o que for possível para quem não tem obrigação de responder aos desejos coletivos.
Assistimos, consternados, a uma estranha confissão de preguiça dos nossos administradores. Não sou ingênuo, não é preguiça, estão a serviço do capital, daquilo que Mark Fisher chama de Realismo Capitalista, em evidente paródia ao Realismo Socialista ou Socialismo Real. Desejos e aspirações devem permanecer no nível do indivíduo, tornando-o único responsável pelo seu sucesso ou fracasso. O sistema se isenta, não assume responsabilidades coletivas, cada um que se vire no mercado que, sabemos, não tem lugar para todos. Não é à toa, diz ele, a epidemia de depressão e ansiedade que o mundo está vivendo. Os mais capazes terão sucesso, nos dizem como consolo, ignorando a carga de exclusão que essa frase carrega. Sucesso individual, bem entendido. O prazer coletivo ficou para trás, superado pelo narcisismo necessário para que o sistema funcione.
Esses pensamentos ocuparam minha cabeça quando minha filha pediu: escreve sobre a sujeira dessa cidade, não aguento mais pegar ônibus na parada imunda, caminhar por ruas sujas. O que custava lavar com água e sabão? Verdade, solução tão simples, tão eficaz. Por que não se faz?
Porque não tem ninguém olhando para a cidade. A Iniciativa Pública abdicou da sua função de cuidá-la em seu sentido amplo, feminino, do termo. A administração passou a atender quase que exclusivamente a reivindicações de grupos privados de maneira imediatista, sem uma visão minimamente holística e de futuro.
O que dizer de uma prefeitura que deixou sua cidade alagar porque viu no seu muro de proteção uma oportunidade de marketing e não de segurança? O muro que não nos protegeu por falhas estúpidas na sua manutenção foi cedido à Iniciativa Privada para ser ridiculamente decorado com gigantescos outdoors e algum verde para disfarçar a desfaçatez.
Não está na hora de clamarmos por Iniciativa Pública?
Foto da Capa: Luísa Kiefer
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