É um tempo em que procuro não fazer planos, nem alimentar expectativas. Apenas manter os pés bem firmes no chão, mesmo que as pernas, às vezes, falhem. Até porque a gangorra da vida, para o bem e para o mal, carrega muitas surpresas e preciso de leveza neste caminho tumultuado. Quando menos se espera, um acontecimento nos paralisa, angústia, enlouquece. Arranca as certezas mais banais. Rouba nossa tranquilidade. Como as invasões que destruíram as principais instituições do país no dia 8 de janeiro. Atos terroristas carregadas de ódio e ignorância, que tiveram financiadores, organizadores, executores e amparo de agentes públicos omissos, que tudo sabiam e nada fizeram. Vandalismo grotesco e assustador, insuflado por quem perdeu as eleições e fugiu inconformado.
Tempo de insanidades, discussões bizarras nas redes sociais e aplausos para a imbecilidade explícita
Um tempo de incertezas, sob os mais diversos aspectos. Se os perdedores entendessem minimamente o que é uma democracia e o respeito que devemos ter pelo resultado das eleições, não seriam tão prepotentes. Pelo contrário. Fariam suas manifestações dentro dos limites, preservando a ordem e o patrimônio público. Exerceriam com dignidade seus direitos de cidadãos e cidadãs. Mas essa delicadeza nos foi roubada nos últimos quatro anos por um governo que deixou rastros de brutalidade e barbárie materializados nos ataques chocantes ao Executivo, Legislativo e Judiciário. Um governo que se preocupou apenas em preservar suas milícias, alimentar ódios, autorizar o uso de armas, jamais em exercer com lisura a função para a qual foi eleito.
Um tempo de alegria, mas também de inquietação e espanto
Alegria estimulada pelo emocionante resultado das eleições e pelas cerimônias de posse, tanto do presidente eleito, Lula, como de Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, e de Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial. Quase 523 anos depois, vimos o Brasil despertar, levantar do “berço esplêndido”, reconhecer e valorizar as origens do seu povo e a força da nossa ancestralidade.
Inquietação provocada pela reação intempestiva de quem não sabe perder e comanda uma massa alienada que, ao mesmo tempo em que pede a volta da ditadura militar, clama por liberdade. Sem a mínima consciência do ser social e político que somos. Neste cenário, o meu tempo é também de espanto, indignação e tristeza. É muito difícil para quem viveu e lutou contra os ásperos 21 anos de ditadura militar (1º de abril de 1964 até 15 de março de 1985) enfrentar a degradação ética e moral que impuseram ao Brasil e ver a ignorância ocupar o lugar da sabedoria. E, consequentemente, acompanhar a negação explícita da arte, da educação, da ciência e do conhecimento. Negação mais do que escancarada pela depredação absurda de um patrimônio cultural que é de todos nós, como a tela “As mulatas” de Di Cavalcanti, um dos pintores que mais traduziu a nossa brasilidade. É duro suportar tanta arrogância e tanta imbecilidade!
A arte me deu asas para os voos necessários que me fizeram livre, responsável, crítica. E abriu meus olhos para a riqueza da diversidade humana
O que leva tantas pessoas a agir de um jeito tão raivoso e cruel? O que leva quem já não está mais no comando da nação a ainda fazer a apologia da destruição e da morte? Um governo de garras nefastas que insuflou todo tipo de discriminação e subtraiu direitos de pessoas com deficiência, debochou da ciência, das pesquisas, das vacinas e das pessoas que agonizavam nos hospitais. Nunca pronunciou uma palavra de conforto quando procurado pela imprensa nos momentos difíceis que passamos, mas foi para as ruas com suas “motociatas” ostensivas e indigestas, se abasteceu de armas e seguiu com seus deboches. O que percebo nos movimentos que para negar a posse legítima de Lula provocam tanta baderna é a soberba do poder medíocre e corrosivo que comandou o Brasil, pisoteou nossa história, nossa arte, nossos sonhos e ignorou a nossa dor quando a pandemia, sem freios, tirava tantas vidas.
Um governo lamentável que comprou apoios e patrocinou movimentos antidemocráticos, compactuando com a corrupção para manter privilégios, cargos e salários milionários. Um governo sustentado por uma camada social privilegiada e soberba que ainda almeja a casa grande para ser servida pela senzala.
Já cantamos com Chico Buarque lá atrás e seguimos cantando hoje, “vai passar”. Com “a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”, como diz a canção de Walter Franco, que também cantamos no final dos anos 1970.