Entre tantas questões intrigantes da Inteligência Artificial, acho a nossa necessidade de personificar a máquina uma coisa penosa – desde robôs a nossa “imagem e semelhança” à interações humanizadas/afetivas, como retratado brilhantemente no filme Her, de Spike Jonze, com o grande Joaquin Phoenix.* Vamos refletir sob a ótica de como o inconsciente se organiza pela palavra, os conceitos de linguagem e língua, que Jacques Lacan uniu ao levar para a psicanálise, mostrando o gap entre língua e mundo, a frase ganhando sentido na medida da sua construção. O analista empresta consequência às palavras do analisando assim como os poetas renovam o termo mais banal dando-lhe uma nova dimensão.
O poeta René Daumal disse que devemos achar o sabor da palavra. Em seus estudos de sânscrito, Daumal buscava o “momento da passagem a uma nova ordem de grandeza”, se referindo a especulação dos hindus quanto aos poderes da palavra e a importância da descoberta do zero na matemática, que resolveu o impasse da contagem grega com a colocação do zero à direita de um algarismo, mudando sua grandeza para a dezena, centena, milhar, etc. Nas psicoterapias, na psicanálise, a palavra pode deixar de se referir a alguma coisa para adquirir uma mudança de grandeza, tal qual a do zero na matemática. Zero em sânscrito é kha: buraco, orifício, vazio, ponto, espaço infinito, céu, ar. O “eixo de uma roda”, o centro imóvel que torna possível o movimento de rotação, é o vazio que está no meio que permite o uso da roda. Assim como é o silêncio que faz possível a música.
Há inúmeros exercícios com a máquina e vou tomar por exemplo um que o psicanalista Haendel Motta fez algum tempo atrás. Inspirado no filme de Ingmar Bergman, O sétimo selo, ele deu a seguinte instrução ao ChatGPT: “Criar um diálogo teatral entre um Cavaleiro medieval e a Morte, enquanto jogam uma partida de xadrez: o cavaleiro quer ganhar a partida, a morte não entende de onde ele tira essa ideia, dado que é impossível vencê-la; o diálogo deve abordar os temas amor, significado da vida, ambição e humildade; sem explicações, apenas criar o diálogo.” A IA fez um diálogo crível, mas insosso. Como diz o filósofo Luc Ferry, a IA pode certamente imitar a inteligência humana, imitar um diálogo, mas somente como um psicanalista ruim que, ao ouvir a palavra “mamãe”, responde “Sua mãe, ah, bem, claro, então associe livremente”. A IA não foi capaz de criar diálogos tão expressivos e belos como os do filme de Bergman (1957). Talvez consiga se de fato chegarmos a desenvolver, em algum futuro remoto, a IA forte (dotada de consciência e emoções). Por hora, ainda se busca uma forma de os robôs simularem emoções, para que nossa interação com eles seja mais próxima e natural, segundo o neurocientista e futurista Álvaro Machado Dias. Ele comenta que com a ajuda de algoritmos que analisam sentimentos, robôs poderiam demonstrar emoções baseadas em dados de maneira convincente, sem realmente senti-las. Mas isso é realmente necessário?
A função primordial da IA é nos abastecer de informações em volume, velocidade, variedade e valor, que nosso cérebro biológico levaria um tempo incalculável para buscar (ao menos neste estágio em que nos encontramos). Se trabalharmos de forma não ilusória com a máquina, podemos organizar os algoritmos de forma a obter muito mais sentido nas respostas que ela trará da descomunal massa de dados digitais hoje disponíveis, e que só vai aumentando. “Tudo é questão de análise, de data mining (…), da capacidade de extrair sentido dos data, capacidade que depende principalmente da escolha dos algoritmos que permitem deixar aparecer significados úteis a partir de uma massa a princípio globalmente informe (embora parte desses dados já esteja estruturada, portanto com certo sentido) “, escreveu Luc Ferry no seu livro A revolução transumanista.
A máquina é apenas um instrumento para nós, dada a complexidade de Ser humano – não precisamos personificá-la, dar-lhe um rosto, criar-lhe sentimentos. Somos nós com nós mesmos, a IA não vai mitigar nossas carências. Assim, pode ser muito mais produtivo a usarmos como a ferramenta que é, nos permitindo uma nova mudança de grandeza com a palavra, com uma elaboração “conjunta” de sentido. Por isso é tão determinante a nossa lucidez e criatividade ao abastecê-la. Nas interações entre humanos e robôs sob nossa regência, podemos tentar um fluxo de consciência, por exemplo, ao invés de uma conversa banal para driblar o tempo, tentando preencher lacunas impreenchíveis, a nossa solidão, a nossa angústia.
(*) Software com sentimento, tecnologia do filme ‘Ela’ ainda está distante. Favorito ao Oscar de Melhor Roteiro, longa traz sistema que ri e faz sexo.
Interface humanizada presente do filme é ‘ensaiada’ no Siri e Google Now.
Foto da Capa: Filme Her – Divulgação