O conceito de interseccionalidade, criado pelas mulheres negras na diáspora, foi escrito pela primeira vez em um artigo pela intelectual e advogada estadunidense Kimberlé Crenshaw, em 1989. Tem a premissa de discutir raça, gênero e classe conjuntamente, como um instrumento político e analítico que não hierarquiza, isto é, não elege a mais importante destas estruturas que oprimem, no caso, as mulheres negras.
A produção intelectual, do ponto de vista da interseccionalidade, analisa fatos históricos com olhar crítico, ao ponto de serem pensados de forma diferente da qual, pela narrativa histórica tradicional, foram sedimentando culturalmente um povo, uma sociedade. Portanto, em tempos de Mês Farroupilha, sou imbuída nesse esforço, como mulher negra e socióloga, a escrever a respeito.
Quando chega setembro no Rio Grande do Sul, traz toda a produção cultural nas mídias a partir de grandes eventos como a Expointer, no município de Esteio, e o Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre. Ambos influenciam o Estado e os CTGs – Centros de Tradições Gaúchas, espalhados pelo Brasil, reafirmando o imaginário social do “gaúcho”, no qual predomina a figura do macho e branco.
Debater as questões de gênero e raça nesse contexto, do ponto de vista de mulheres negras, é algo pouco encontrado em bibliografia, e se faz essencial tensionar para uma compreensão mais ampla e crítica da história e da cultura sul-rio-grandense. Afinal, cultura se faz com o povo, e este a mantém.
Se há séculos o RS tem população negra, onde ela se localiza nessa história? Se as mulheres são as maiores responsáveis pela manutenção das famílias, em especial as negras, onde está a fala delas nessa história? E eu, mulher negra, nascida nesta terra, onde me reconheço? Qual meu pertencimento?
Embora a Revolução Farroupilha e as celebrações relacionadas tenham grande importância para um grupo que reforça a identidade regional, elas também refletem as complexas dinâmicas de poder, exclusão e falta de representatividade que fazem parte da sociedade brasileira.
Contexto histórico
O 20 de setembro, que marca o início da Revolução Farroupilha – ou a Guerra dos Farrapos -, de 1835, foi uma revolta liderada por’ estancieiros (proprietários de grandes fazendas) sul-rio-grandenses contra o governo imperial do Brasil. Os rebeldes lutavam por maior autonomia política e melhores condições econômicas para a região, que enfrentava altos impostos e pouca atenção do governo central. A chamada revolução durou quase dez anos, até 1845, e terminou com a assinatura do Tratado de Poncho Verde, garantindo algumas concessões aos farroupilhas, mas manteve o Rio Grande do Sul como parte do Brasil.
Na história oficial da Revolução Farroupilha, predominantemente o protagonismo é das figuras masculinas, tais como Bento Gonçalves, Giuseppe Garibaldi, David Canabarro e outros líderes militares. As mulheres, embora presentes e, com certeza, importantes na época, frequentemente ocupam, na história oficial, papeis secundários ou de suporte, como o caso de Anita Garibaldi, uma mulher branca, dentre as poucas figuras femininas destacadas, muitas vezes retratada em função de seu relacionamento com Giuseppe Garibaldi.
Presença feminina
Atualmente, as celebrações mais tradicionais são os desfiles, acampamentos e atividades nos CTGs. Nestes, as mulheres ainda costumam ser associadas às funções de cuidado e suporte, como o preparo de alimentos e a preservação da “pureza” cultural através do vestuário típico e de suas danças, reforçando uma visão conservadora e patriarcal, na qual o feminino está vinculado a funções passivas ou decorativas, com as chamadas “prendas”.
Nos últimos anos, no entanto, há um movimento crescente de questionamento e resistência a essas normas de gênero dentro do tradicionalismo gaúcho. Mulheres têm se organizado cada vez mais para ocupar espaços de liderança nos CTGs, e há mais visibilidade para as contribuições femininas na história e na cultura gaúcha. Além disso, cresce a conscientização sobre a necessidade de incluir narrativas que reflitam as experiências e lutas das mulheres durante a Revolução Farroupilha.
O movimento negro e a mulher negra
No meio cultural “gaúcho”, há notícias de CTGs organizados e administrados por famílias negras. Ressalto a presença da declamadora Liliana Cardoso, uma mulher negra, ativista cultural, radialista, apresentadora e mestre de cerimônias e, atualmente, presidente da comissão dos Festejos Farroupilhas da Secretaria de Cultura de Porto Alegre. Ela organizou um livro chamado “A matriz da cultura negra no gauchismo” (2021), que reúne diversos autores/pesquisadores escrevendo sobre a temática racial e de gênero. Um trabalho atualizado e com pretensões de trazer a sujeita e o sujeito negro mais ao centro da discussão. Liliana também foi a primeira patrona negra da história dos Festejos Farroupilhas, em 2021.
As questões de raça na chamada Revolução Farroupilha e na cultura tradicional gaúcha dão ênfase à imigração de italianos, alemães e outros grupos europeus, invisibilizando a presença anterior dos povos indígenas e africanos, ambos sujeitos à escravização e subjugação. Essa narrativa desqualifica as contribuições desses povos na história oficial do Rio Grande do Sul. Porém, é cada vez mais tensionada por meio do Movimento Negro para serem debatidos e divulgados fatos como a presença marcante dos Lanceiros Negros, homens escravizados recrutados para lutar com a promessa de liberdade que, no entanto, ao final do conflito, foram traídos no episódio conhecido como Massacre de Porongos. Muitos foram mortos e, os poucos que sobreviveram, retornaram à escravidão.
Esse aspecto da história é frequentemente ignorado nas celebrações oficiais, que tendem a romantizar a revolução e seus líderes, e expõe a hipocrisia do movimento farroupilha, que, embora lutasse por maior autonomia e justiça, não estendia esses ideais aos homens negros que foram fundamentais para o esforço de guerra, refletindo uma tendência histórica de invisibilizar as contribuições e o sofrimento (diminuído e naturalizado) da população negra no Brasil.
Hoje, há um crescente esforço intelectual e acadêmico para recontar essa história de forma completa e justa, reconhecendo o papel dos Lanceiros Negros e denunciando as traições sofridas. A memória desses bravos guerreiros é fundamental para a compreensão mais aprofundada das lutas pela liberdade negra e para a crítica das narrativas hegemônicas que frequentemente excluem ou distorcem a história dos afro-brasileiros.
Se faz necessário, também, encontrar narrativas que permeiem a experiência das mulheres negras nesse contexto histórico, para que meninas e mulheres, não somente as negras – mas estas em especial -, possam despertar o sentimento de pertencimento a um território e a uma luta, que com certeza houve, por justiça e liberdade.
É essencial que as celebrações de orgulho às tradições sejam repensadas para incluir narrativas diversas e para revisar as estruturas de poder que ainda perpetuam, mantendo a exclusão e a desigualdade.
Ressignificar um hino contraditório
A resistência ao questionamento das tradições também revela muito sobre como a identidade regional é construída e protegida, principalmente dos grupos historicamente marginalizados. Belo exemplo é o debate sobre a frase “povo que não tem virtude, acaba por ser escravo” do Hino Riograndense, que permeia debates intensos e que o movimento social negro, pela formulação de Oliveira Silveira, sugere há anos a mudança para “Povo que é lança e virtude a clava quer ver escravo”.
Nesse contexto, a frase sugerida pode ser lida como uma crítica e/ou reflexão sobre o uso da força e poder (clava) para subjugar alguém, contrastando com a virtude dos “subjugados”. Ou seja, um povo que é ponta de lança e tem virtude (lanceiros negros), mas não usa seu poder para dominar e escravizar. Sendo assim, o poeta aborda, em sua proposta, a contradição, existente na revolução, entre a busca por liberdade econômica e, ao mesmo tempo, a violência ou dominação como forma de controle, algo que remete diretamente a críticas sociais e históricas, especialmente ligadas à escravidão do povo negro no Sul.
Nina Fola, mãe de Aretha e Malyck, é multiartista, socióloga, atuante nos coletivos @afroentes, @coletivoatinuke e @odaba.br. Aborda a questão de raça e gênero em todos os seus trabalhos acadêmicos, artísticos e profissionais. Gestora do @cavalodeideias, uma consultoria em diversidade e inclusão onde faz palestras e formações. (@ninafola)
Foto da Capa: Pikaso / Gerada por IA
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