Yuval Noah Harari (foto da capa) provavelmente é o autor israelense mais lido em todo o mundo. Durante as quarenta semanas de protestos contra as reformas antidemocráticas do governo de Benjamin Netanyahu, foi a face pública do movimento, indo à rua para discursar em defesa da democracia e diversidade.
Harari tem estado bastante ocupado nas últimas semanas, desde que os atos terroristas do Hamas desataram mais uma onda de violência na região e sua visão é bastante representativa do pensamento de grande parte da sociedade israelense. Em diversas oportunidades, tem dito que os israelenses estão ocupados com sua própria dor e acredita que o mesmo está acontecendo com os palestinos.
E esse tem sido o desafio diário, administrar emoções e tarefas diárias, enquanto estamos vivendo uma espécie de luto coletivo e temerosos do que pode acontecer nas próximas semanas. Falo do meu lugar de fala, de judeu que mora no Brasil e tem muitos parentes e amigos em Israel, não posso falar em nome dos israelenses que estão vivendo isso todo dia de outra forma ou dos palestinos em Gaza ou ao redor do mundo.
O cansaço torna-se maior com as redes sociais. Antes, poderíamos fechar a porta e tentar deixar a guerra de lado (claro que quem está lá não tem esse privilégio). Hoje, com as redes sociais e aplicativos como WhatsApp e Telegram isso parece uma missão impossível. Pessoas se sentem no direito de cobrar um posicionamento sobre qualquer evento relacionado ao Oriente Médio, não importa o dia nem a hora. Domingo, às 22h30, por exemplo. Sequer importa se é um fato real, imaginário ou relevante.
Pensei nisso quando bati os olhos nesse “fio” no X (ex-Twitter) do professor de Relações Internacionais Oliver Stuenkel, que tenta explicar essa onipresença e paixão despertada pelo tema nas redes sociais. Diz ele:
O conflito entre Israel e Hamas inflama as redes sociais enquanto outras guerras mais sangrentas da atualidade – algumas que envolvem limpeza étnica em grande escala –não produzem comoção pública nem briga nas redes. Por que a guerra em Gaza polariza mais do que as outras?🧵👇
Por exemplo, mais de 600 mil civis morreram durante a recente guerra na Etiópia, em parte devido ao bloqueio do governo, que impediu a entrada de ajuda humanitária. Mais de 300 mil civis foram mortos na guerra civil na Síria. Há atualmente uma campanha de limpeza étnica no Sudão.
Os conflitos mencionados acima envolvem injustiças históricas, civis massacrados da pior forma possível, estupros em massa, questões raciais e religiosas, envio de armas por atores externos e fácil acesso a informações sobre as atrocidades. Mas eles geram poucas brigas nas redes.
Além disso, apesar da inquestionável gravidade do conflito entre Israel e Hamas, o risco de a guerra levar a um confronto entre superpotências é consideravelmente menor do que, por exemplo, a guerra na Ucrânia, onde morreram em torno de 500 mil pessoas (civis e soldados).
Uma hipótese para explicar por que o conflito entre Israel e Hamas gera tantos confrontos nas redes sociais é que ele oferece oportunidade valiosa para reafirmarmos nossas crenças e preconceitos e enxergarmos supostas certezas em um mundo cheio de ambiguidades.
Seja para o antissemita, que vê o dedinho dos judeus em qq problema do mundo; seja para o islamofóbico convencido de que o Islã é uma religião mais violenta do que as outras; o conflito oferece muito para ajudar a substanciar e dar vazão ao ódio e consolidar preconceitos.
O mesmo vale dizer sobre o ferrenho antiamericanista, para quem Israel é um resquício do colonialismo ocidental que convenientemente ignora as centenas de milhares de judeus expulsos de países árabes dps de 1948, ou sobre quem minimiza ou normaliza o sofrimento do povo palestino.
No Brasil, ser pró-Israel virou elemento-chave do bolsonarismo, e ser pró-Palestina tem sido o padrão em vários grupos de esquerda. As trincheiras digitais, por assim dizer, já foram construídas, e a briga Palestina vs. Israel se encaixa bem nas divisões esquerda vs direita.
Na guerra da Ucrânia, por outro lado, esquerda e direita não estavam em campos opostos: a divisão era mais difusa e até uniu partes da esquerda antiamericana, trumpistas e ultraconservadores que admiram Vladimir Putin.
De fato, se o melhor escritor de ficção tentasse inventar um conflito com o único objetivo de polarizar a mobilizar o mais alto número de pessoas, ele não seria capaz de imaginar algo mais eficaz do que o conflito entre Israel e Palestina.
Tudo isso explica por que, no que diz respeito ao conflito entre Israel e Hamas, o maior problema já não é a oferta de notícias falsas — é a alta demanda por fake news que as pessoas buscam como munição para entrar na briga.
Ou seja, brigar com pessoas desconhecidas sobre o conflito entre Israel e Hamas parece trazer algum tipo de conforto emocional, ajudando a esquecer, temporariamente, as contradições que marcam a vida política.
Como Wilson Gomes escreveu recentemente, há uma “necessidade, típica do narcisismo digital, de que todo mundo, o tempo todo, tome posição sobre a rixa do momento (…) Dizer ‘não sou capaz de opinar’ é comportamento socialmente inaceitável.”
E o narcisista, se acha tão belo, que tudo no outro é defeito, já que só admira a própria imagem, ou opinião, no espelho.
Foto da Capa: Yuval Harari – reprodução do Youtube