Se você ainda não se aventurou em nenhum episódio de Black Mirror, está na hora de reconsiderar. Essa série britânica, idealizada por Charlie Brooker em 2011 e hoje disponível na Netflix, não é mero entretenimento: ela escancara a face sombria da nossa relação com a tecnologia e torna palpáveis distopias que pareciam absurdas. Não à toa virou expressão cotidiana dizer “isso é muito Black Mirror” sempre que algo tecnológico beira o insano.
O próprio título — “espelho negro” — já denuncia a proposta crítica. Experimente desligar sua TV, computador ou celular: tudo o que vê é o reflexo opaco da tela. Brooker pretende justamente isso, forçar uma reflexão desconfortável sobre como os dispositivos eletrônicos, que moldam nosso comportamento e nos monitoram, classificam e vendem o que nem sempre desejaríamos comprar.
No episódio “Pessoas Comuns” (sétima temporada), a série leva ao extremo a lógica de mercado aplicada à saúde humana. Um casal simples tem sua vida dilacerada ao descobrir um tumor cerebral terminal, até que uma empresa privada surge com solução “milagrosa”: extrair e armazenar as memórias num servidor em nuvem, substituir o tumor por um chip e, depois, cobrar uma assinatura mensal para manter o “paciente” vivo. A ironia é brutal: a vida humana transformada em plano de saúde. Não estamos tão distantes dos experimentos da Neuralink, de Elon Musk, que já testa chips cerebrais. Onde estará o limite entre cura e controle mercadológico quando a tecnologia invadir nosso córtex?
Em “Queda Livre” (2016), Brooker descreve uma sociedade em que cada interação social vira nota num app: amizades, empregos, viagens e até crédito bancário dependem de avaliações anônimas. A crítica é fulminante: reduzimos nossos relacionamentos e reputação a métricas frias — exatamente o que vivemos hoje, quando o valor de influenciadores, restaurantes e até a qualificação de médicos parece medido por curtidas, seguidores e reviews.
O que chama atenção não é apenas a imaginação fértil de Brooker, mas a velocidade com que suas visões se tornam realidade. Se no início Black Mirror parecia futurismo extremo, hoje seus roteiros soam menos como advertência sobre o que “poderia” acontecer e mais como reflexo do que já está em curso. A ficção de outrora se converte em alerta: as “maravilhas tecnológicas” carregam riscos sociais profundos. Resta perguntar: até que ponto vamos aceitar nossos comportamentos, memórias e até nossa própria consciência como mercadoria? Afinal, será que já não vivemos num eterno episódio de Black Mirror?
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Foto da capa: Divulgação