Querido vô Israel,
Venho aqui te pedir “desculpas”, palavra apropriada para a ocasião, por evocar a culpa que estou sentindo pelo que estou fazendo agora.
Estou fazendo a solicitação de minha cidadania polonesa, e cada poro de minha pele sabe o quanto sofrerias, ao ficar sabendo disso. Nem imaginas o quanto sofres, dentro de mim, lá onde carregamos para o nosso sempre aqueles que já partiram.
Foste muito importante na minha vida, vô Israel, pelo tanto que transmitias da alegria de viver. Alegria havia na mãe, no pai e nos outros três avós, mas em ti ela sobrava e, por isso, era repartida generosamente com quem a pegava. Eu peguei.
A alegria com que caminhavas até o Centro da cidade, onde compravas para ti e para nós chocolates na Neugebauer, a alegria com que tomavas chimarrão, logo cedo de manhã e à tardinha, a alegria com que bebias Underberg antes de cada refeição, com que tomavas banho de mar em Capão da Canoa, com que passeavas com o cachorro e vibravas quando ele começava a dar aquelas voltinhas, prenúncio inegável de que ia fazer cocô.
A alegria com que contavas piadas sempre altamente bagaceiras e filosóficas, muitas delas equivalentes aos chistes que, mais tarde, eu leria em Freud, a alegria com que lias, no jornal ídiche, Scholem Alechem e Isaac Bashevis Singer, teu conterrâneo que te inspirava a escrever poemas que nunca mostraste. Uma alegria imensa que só era interrompida quando falavas da Polônia e eras então invadido pelas lembranças do antissemitismo e de todos os parentes mortos, durante a invasão nazista, de que só foste individualmente poupado por teres saído um pouco antes para viver o sonho aventureiro de um jovem sedento por um mundo melhor. E dê-lhe mais histórias de um caixeiro-viajante no Brasil, banhando o imaginário de um neto e de seus amigos que até hoje lembram daquele homem com o seu cachimbo apontado para o futuro.
Mas toda alegria tem o seu antídoto e a tua, vô Israel, chamava-se Polônia, este país que precisaste deixar tão cedo e que, pouco depois, deixou matar os teus pais, os teus demais familiares e amigos, na aldeia de Krásnik, com exceção de um que escapou aos massacres e lá ficou, sozinho e louco, conhecido, deste então, como “o louco da aldeia”, história confirmada pelo filho de algum outro aldeão que conheci ao acaso, em uma festa parisiense nos anos 90, onde lhe contei o teu ódio pelo país de origem, único momento em que eu via a tua alegria interrompida, como na Copa do Mundo de 74, quando torceste furiosamente contra a seleção polonesa.
Por isso, querido vô Israel, venho aqui pedir desculpas e assegurar-te que não estou perdoando aqueles poloneses que jamais quiseste perdoar e, sim, solicitando um documento que me permita permanecer na França por mais de três meses, sem precisar ser maltratado pelo Serviço de Imigração daquele país, como sofri naqueles anos 90, pouco depois que nos despedimos pela última vez, quando a tua alegria novamente foi interrompida pela tristeza de ver um neto partindo para a Europa.
Guardo um profundo respeito pelo teu ressentimento irreparável diante do que fizeram com os teus e com os nossos, embora eu acredite que hoje são os outros os poloneses, incluindo aquela poeta que, por questões cronológicas, não pudeste conhecer, e aquele seu verso verdadeiro sobre a alma, isso que só de vez em quando é possível ter.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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