“La vita è um miracolo de la matéria”
“La parola è um miracolo de la vita”
Estas instigantes afirmações são atribuídas a Ítalo Svevo, pseudônimo de Aron Hector Schmitz, nascido em Trieste (1861-1928). Filho de uma próspera família judaica, sua mãe era italiana e sua esposa pertencia à proeminente família Veneziani, que fabricava uma substância patenteada a qual protegia da ferrugem os cascos dos navios. Depois de estudar na Alemanha, Italo assumiu a direção da empresa de seu sogro, a qual tinha como principal cliente a Inglaterra, e então teve que aperfeiçoar seu inglês. Para isso, inscreveu-se no Instituto Berlitz de Trieste, onde teve aulas com um irlandês chamado James Joyce que lecionava no curso. Svevo já tinha escrito um livro que ninguém leu: Selenitá (Senilidade, editora Lafonte, 2024, São Paulo – Há uma outra e anterior edição em português). No entanto, o seu professor leu, gostou e o animou a escrever novos livros.
Trieste, na época, era uma cidade multiétnica, predominantemente italiana, embora fizesse parte do Império austro-húngaro. A língua que falavam em sua família era o triestino, uma variante do dialeto veneziano salpicado de palavras eslavas e germânicas, mas para ser entendido teve que apreender e escrever no italiano literário, baseado no dialeto de Dante, o toscano. O próprio nome que adotou o escritor revela esta situação: Ítalo Svevo: meio italiano, meio eslavo.
O tema de Senilidade é um complicado caso amoroso. Por recomendação de Joyce, o livro foi lançado em inglês com o título As a men grows older, embora a história do romance nada tenha a ver com o envelhecimento. Como legítimo burguês, Ítalo Svevo se preocupava muito com sua saúde e, por exemplo, sempre lutou contra o vício do fumo. Em sua obra, a saúde se expressou em vários sentidos, o que seria a boa saúde e de como mantê-la, sob os aspectos físico, psíquico, social e ético.
Seu terceiro romance, A consciência de Zeno, compõe uma trilogia com Uma Vida e Senilidade. O quarto romance, Il vecchione o Le confessioni del vegliardo (“O velhinho” ou “As confissões do ancião”, não sei se há uma edição em português), é uma “continuação” de A consciência de Zeno e ficou inacabado em razão da morte do escritor, em 1928. No entanto, o livro mais elaborado e divulgado de Svevo foi mesmo A Consciência de Zeno (Editora Nova Fronteira, 2004, Rio de Janeiro, tradução de Ivo Barroso e com um excelente posfácio de Alfredo Bosi, falecido em 2021).
As primeiras páginas são de árdua leitura, de uma monotonia quase intransponível, mas com o desenvolvimento da história esta torna-se atraente, fascinante. A Professora Eneida Maria de Souza da UFMG (Folha de São Paulo, 12/10/2002) analisou com precisão o notável livro de Ítalo Svevo. Segundo ela, soube criar uma narrativa sobre o nada, com base num enredo banal, o retrato da vida burguesa de um doente imaginário, entregue ao ócio e aos simples problemas cotidianos. A ambiguidade gerada pela relação entre a realidade e a ficção é fornecida pela utilização da narrativa em primeira pessoa, permitindo que se confunda autor e narrador, escritor e personagem.
O diálogo cumpre o papel de desfazer o equívoco realista, ao romper o teor de verossimilhança, e o personagem do seu imaginado analista Dr. S. (que publicou as memórias de Ítalo Svevo e inclusive escreve o prefácio do livro) e o Dr. Edoardo Weiss, um dos iniciadores da psicanálise na Itália.
O saudoso Alfredo Bosi, numa crítica aguda e brilhante (Céu, inferno, ensaios de crítica literária, Editora Ática, São Paulo, 1988), escreveu: “Em Consciência de Zeno nos impressiona aquele deter-se no enfermiço, aquele comprazer-se nos atos falhos, na representação de viciados que se espreguiçam no vão desejo de se emendarem, dos fanfarrões que ingerem doses (fracas) de veronal para fingirem suicídio, dos abúlicos que se estendem no sofá dos psicanalistas e não pretendem levantar-se tão cedo, não por ter fé no método, mas pela tibieza acariciante de uma distração. São gordos flácidos que querem e não querem emagrecer, são ineptos mornos que querem e não querem agir, são impotentes precoces, sem amor, mas curiosos de sensações e de prazer. O romance é o diário de um universo obsolescente colhido pela via humorística da autoexibição”.
Enfim, Ítalo Svevo foi um escritor prolífico, tendo escrito outros livros menos conhecidos, além de excelentes ensaios de crítica literária e várias peças de teatro, sendo considerado um dos mais destacados escritores da literatura italiana do século XX.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
Foto da Capa: Wikipedia
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