J.B., 72 anos, casado, sapateiro, natural de Roanne. Deu entrada no Hospício São Pedro, em 5/12/1931, às 10:30 horas. Procedente de Rio Grande, em ambulância da assistência. Segundo a papeleta 3430, foi recebido pela Irmã Umbelina. Sem histórico de internações anteriores. O doutor Érico Peixoto atestou que o paciente apresentava perturbações mentais. Trazia consigo, conforme se anotara: um sobretudo, uma calça, uma ceroula, uma camiseta, um suspensório, uma manta, um lenço, um par de botinas, um par de meias, uma bengala, uma cartola, cem réis (dinheiro) e os demais objetos, uma caderneta, uma lapiseira e um espelhinho. É tudo o que consta no Registro de Admissão Provisória, numerado em 11710854400. Teve alta em 11/02/1932, às 23 horas. Por motivo de falecimento. Sepultura do Campo Santo, nº 132, seu destino.
O que me chamou a atenção, num primeiro momento, foi o nome. O teu nome.
Fiz alguns apressados cálculos, só poderia ser o teu avô. O mesmo nome, a procedência, a ascendência franco-germânica, uma história de imigração.
Mas o que me levara a folhear aqueles velhos livros de registro, justamente naquele dia? Onze de fevereiro de 2004. Exatos setenta e dois anos da morte de J.B. de Roanne, aos setenta e dois anos. O acaso? Apenas o acaso?
É possível que nada disso saibas. Internações por distúrbios psiquiátricos sempre foram motivo de vergonha. Não afirmo que seja o caso. Não conheço a história que guardam os teus, mas é comum. A família, não sabendo compreender – e quem o consegue? – prefere esconder, esquecer.
J.B. Sapateiro, de Roanne, uma identidade, uma reflexão. Mais do que apenas um registro, número de uma sepultura no Campo Santo. Ele nos deixa de herança a fortuna de – “uns” e ‘cem”. “Uns” relacionados em: “um sobretudo, um suspensório, uma manta, um par de botinas e suas respectivas meias”. O luxo de “uma bengala, uma cartola e ‘cem’ réis em dinheiro”. “Uma lapiseira e uma caderneta”.
Escrevera algo na caderneta? Um testamento? Um legado? Uma recomendação? A explicação para o fato de que alguém afinal encontraria o registro de sua breve passagem naquela casa de insanos, no exato dia em que se passavam setenta e dois anos de sua morte aos setenta e dois anos de idade?
A descrição de seus pertences lembrou-me um poema que tenho como de Jorge Luís Borges. As coisas. Na descrição do mestre, a semelhança: “A bengala, as moedas, o chaveiro, a dócil fechadura, as tardias notas que não lerão os poucos dias que me restam, os naipes e o tabuleiro. Um livro e, em suas páginas, a seca violeta, monumento de uma tarde sem dúvida inesquecível e já esquecida, o rubro espelho ocidental em que arde uma ilusória aurora. Quantas coisas, limas, umbrais, atlas, taças, cravos, nos servem como tácitos escravos, cegas e estranhamente sigilosas! Durarão para além de nosso esquecimento; nunca saberão que fomos num momento”.
J.B. de Roanne poderia ter sido J. L. Borges. As mesmas iniciais do nome. O dele e o teu nome.
O registro de internação de J.B. 72 anos, casado, sapateiro, natural de Roanne, procedente de Rio Grande, lavrado às 10:30 horas, daquele 5 de dezembro de 1931, pela Irmã Umbelina, também pode ser lido como um poema.
O título, idêntico, As coisas ou, quem sabe, Papeleta 3430.
Assim como J.L. Borges produz um poema, para das coisas dizer da vida, compreendo agora o porquê de ter vencido o calor daquele dia de verão. A poeira incômoda, a insalubre precariedade daqueles livros de registro.
Estava diante de mim a mensagem do que pode durar além do esquecimento: um suspensório, uma manta, um lenço, uma bengala, uma cartola. Objetos anotados sem consciência da transitoriedade do que somos, do que, em breve, fomos.
A curiosidade, mania de remexer em coisas passadas, resultou em surpresa e revelação. O dia exato daquela morte, setenta e dois anos depois, uma vida que alcançara setenta e dois anos. O mesmo nome, por certo, tu o herdara.
Mas havia algo mais: aquele era o dia do teu aniversário. Nasceste no exato dia da morte do teu avô, anos depois. Sabias desse detalhe?
O número preciso da papeleta e do registro de internação podem ser confirmados oportunamente, mas compartilho o achado. Porque talvez ele seja, realmente, o teu avô. Se não o foi, poderia ter sido. Também o meu e o de qualquer um.
Talvez isso nada signifique, mera coincidência. Uma brincadeira qualquer, caminho cruzado nos labirintos do tempo. Apenas uma daquelas histórias que um bruxo como J.L. Borges gostava de criar. A travessura de um gnomo, um duende, um pequeno kobold brincalhão. Também de Roanne, de profissão sapateiro. Entre os duendes, há bons artesãos sapateiros.
De inventário e de sentença, além da fortuita menção de existências – J.B. de Roanne, Irmã Umbelina, doutor Peixoto – o que nos cabe? O que resta, afinal?
Foi-se a cartola, a bengala, o suspensório, perdeu-se a ceroula, as calças, o par de botinas. As traças responsabilizaram-se pela caderneta de anotações. Extraviou-se o dinheiro. Resta, a pulsão vivida.
Eterno somente o reflexo daquele espelhinho, último item dentre os pertences anotados no dia da internação.
Aquele espelhinho onde também ardia “uma ilusória aurora”. Que guardou a imagem do teu avô, que em nada é diferente da de J.L. Borges, da minha e da tua.
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Foto da Capa: Detalhe de Schumacher bei der Arbeit. Paul Regnet, 1905